Somos os mesmos, mas já não somos os mesmos
Na loucura, seria possível duplicar o número de hospitais e centros de saúde do país, mas os profissionais de saúde não se fazem numa fábrica.
Nós não tivemos tempo de lamber as feridas. É evidente que estamos numa segunda vaga e não estamos preparados. Não estivemos, não estamos e talvez nunca fosse possível estarmos. É um problema de saúde pública que só se controla a montante dos hospitais. É um tsunami silencioso que passa por toda a gente sem se fazer notar, tal como a dita “onda gigante” é quase imperceptível para quem está em alto mar, até que rebenta com estrondo e destrói todos os que se encontram no sítio errado à hora errada.
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Nós não tivemos tempo de lamber as feridas. É evidente que estamos numa segunda vaga e não estamos preparados. Não estivemos, não estamos e talvez nunca fosse possível estarmos. É um problema de saúde pública que só se controla a montante dos hospitais. É um tsunami silencioso que passa por toda a gente sem se fazer notar, tal como a dita “onda gigante” é quase imperceptível para quem está em alto mar, até que rebenta com estrondo e destrói todos os que se encontram no sítio errado à hora errada.
Estar preparado para o que aí vem só seria possível se tivéssemos um pensamento militar, investindo milhões só para estar preparado para uma guerra que muitos nunca viram. Mas esta vê-se. Viu-se e vai voltar a ver-se. E só a ideia de reviver o que passámos há seis meses faz-me sofrer.
Poderíamos sempre ter feito melhor, mas não sou demasiado crítico por não estarmos preparados. É apenas um facto incontornável. Na loucura, seria possível duplicar o número de hospitais e centros de saúde do país, mas os profissionais de saúde não se fazem numa fábrica, e por isso é que a única arma realmente impactante que temos para salvar vidas está fora dos hospitais. Está nos bares e restaurantes, nas escolas, nas famílias e nos beijos e abraços. Está em todos os locais onde o vírus anda a saltar de uns para os outros. Porque nos hospitais só podemos tentar esvaziar o oceano com uma colher de chá.
Somos os mesmos, mas já não somos os mesmos. Ainda não tivemos tempo de lamber as feridas. Ainda nos doem as cicatrizes no corpo e mais ainda na alma. Tivemos de aprender, tivemos de ensinar, tivemos de engolir as lágrimas para enfrentar o desafio, para só as deixar sair na exaustão quando víamos o hospital pelas costas. Vimos gente a morrer sozinha e disparámos palavras-bala pelo telefone às famílias que esperavam de nós um milagre, mas recebiam a dura realidade. Mas estas palavras fazem ricochete e a razão pela qual doem tanto é a mesma que nos fez escolher esta profissão – é porque não somos de ferro.
Decidimos salvar vidas. E é isso que vamos continuar a fazer. Dar tudo o que temos, enquanto tivermos, para tratar esta maldita doença e todas as outras que sempre tratámos. Ricos e pobres, gordos e magros, os que nos respeitam e os outros também. Os que acreditam na ciência e nas organizações, e também os que relativizam, facilitam, negam ou confabulam a dureza do desafio que temos pela frente. Trataremos todos. Todos os que pudermos, sustentados na premissa de que somos todos iguais.
Estamos doridos, cansados e até traumatizados. Já não somos os mesmos, mas vamos à luta com os mesmos. Os mesmos que sempre acreditaram que a medicina é um bem público, de todos e para todos. Não estamos preparados, mas vamos na mesma, com a certeza que, enquanto a vida humana for o bem mais precioso, a medicina será sempre a mais bonita das ciências.
Somos os mesmos.