“O corpo da pessoa desaparece, mas as suas histórias e o seu amor não morrem”

A médica brasileira Ana Cláudia Quintana Arantes já acompanhou “milhares” de doentes terminais. Juntou 16 casos, incluindo os dos seus pais, e escreveu Histórias lindas de morrer.

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Victor Moryama

Quando escreveu o primeiro livro, os amigos alertaram que a palavra “morte” afastaria os leitores. Há quatro anos que A morte é um dia que vale a pena viver é um bestseller no Brasil, há quatro anos. “Recebo mensagens que me são enviadas de madrugada, altura em que as pessoas terminam de ler, a dizer que o livro mudou as suas visões do luto, que os salvou, que os fez compreender o outro, perdoar, amar mais. O feedback é sempre de vida, não é de morte”, conta a médica Ana Cláudia Quintana Arantes. 

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Quando escreveu o primeiro livro, os amigos alertaram que a palavra “morte” afastaria os leitores. Há quatro anos que A morte é um dia que vale a pena viver é um bestseller no Brasil, há quatro anos. “Recebo mensagens que me são enviadas de madrugada, altura em que as pessoas terminam de ler, a dizer que o livro mudou as suas visões do luto, que os salvou, que os fez compreender o outro, perdoar, amar mais. O feedback é sempre de vida, não é de morte”, conta a médica Ana Cláudia Quintana Arantes. 

Agora, volta ao tema da morte para contar 16 histórias de pessoas que tiveram cuidados paliativos, que a especialista com 25 anos de carreira acompanhou até ao final de vida. Chama-se Histórias lindas de morrer, editado pela Oficina do Livro. Esta semana, atendeu um telefonema de Marcelo Rebelo de Sousa, que recebeu o seu livro de presente de uns amigos em comum. “Gente, que máximo, que coisa mais linda! Que bom que haja um país que tem um presidente lindo como vocês têm. Só vos podemos pedir que orem por nós, por favor”, reage a autora pelo telefone, em entrevista ao PÚBLICO. Já tem prazo de entrega para o próximo livro, revela. Será sobre o envelhecimento.

Esta semana, a apresentação do livro em Portugal fez-se no Facebook e teve mais de 3,3 mil visualizações, informa a editora. Ana Cláudia Quintana Arantes estava em São Paulo e Isabel Galriça Neto, uma das precursoras dos cuidados paliativos em Portugal, que em tempos foi deputada do CDS, do lado de cá do Atlântico. Neste sábado assinala-se o Dia Mundial dos Cuidados Paliativos.

Depois do sucesso do primeiro livro, porquê voltar ao tema da morte?
O primeiro livro é como se fosse um “modo de fazer”, quais os cuidados a ter com as pessoas que enfrentam doenças que ameaçam a continuidade da sua vida. No primeiro trago o contexto de onde venho para justificar a ousadia de falar sobre este assunto. Termino o livro com a reflexão sobre o processo de luto. Uma das frases mais marcantes do livro é: “O amor não morre.” O corpo da pessoa desaparece, mas as suas histórias e o seu amor não morrem.

O segundo são histórias, em diversos contextos (hospital, casa, casa paliativa, um espaço de cuidado paliativo), onde a abordagem ao sofrimento é o único caminho possível porque a medicina já não consegue modificar a história natural da doença e o doente vai morrer. Estas histórias foram escolhidas perante os dilemas humanos — a verdade, a esperança, a amizade, o medo, a culpa, o perdão. Não posso dizer que são as melhores, tenho milhares, mas podem ser uma referência para quem tenha dilemas semelhantes.

O livro confronta-nos com a nossa finitude?
Sim, mas ao mesmo tempo, através da narrativa pode ajudar a transformar muitas vidas porque as pessoas podem identificar-se com uma história sobre amizade, abandono, sentimento de culpa, verdade... Convido o leitor para que se sente com cada um dos personagens e ouça o que eles têm para dizer sobre a sua vida.

Os dois últimos capítulos são sobre os seus pais, porquê?
Muitas pessoas fantasiam a vida dos profissionais que cuidam dos que morrem, como se fossemos de outro planeta, como se a morte não nos acontecesse ou como se pudéssemos usar o nosso trabalho como uma forma de negar a nossa própria realidade. Deixei para o final [do livro] as histórias dos meus pais porque eu vivi o mesmo que os familiares dos meus doentes vivem. Estou muito grata ao trabalho dos cuidados paliativos porque me proporcionaram um processo de entendimento e de luto que me permitiram ser quem sou, hoje. 

Nestes livros, com as suas histórias, deixa de ser uma médica para ser uma guru?
Não! (risos) Talvez tenha o papel de inspirar as pessoas. Talvez possa ser um pouco do ar que as pessoas inspiram e ajudá-las a modificar as suas vidas, mas não quero dar palpites a ninguém!

Mas, como médica, a sua função é a de aconselhar os seus doentes.
Sim, quando me pedem. Nas minhas consultas, a primeira parte é sempre muito silenciosa, eu escuto o que o doente tem para dizer. À medida que crio um vínculo de confiança e de segurança [com o doente], começo a fazer perguntas e exploro mais, aprofundo mais.

Porque, no que diz respeito aos cuidados paliativos, a função do médico é mais do que atenuar a dor?
A abordagem premeia o alívio do sofrimento em cinco dimensões humanas: a biológica, emocional, familiar, social e espiritual. O objectivo desses cuidados não é só o controlo de sintomas, não é só aliviar a dor, mas utilizar esse alívio para que o doente experimente um espaço de conforto, de maneira a poder experimentar as outras dimensões. Uma pessoa com dor não consegue expressar a sua preocupação com a família ou a sua dimensão espiritual. Por isso, aliviamos a dor física, para que as outras [dimensões] possam ser pensadas e também cuidadas. 

No seu livro, nos seus diálogos com os doentes fala frequentemente em Deus. O médico precisa de ser um ser espiritual?
O médico precisa de ser um ser humano, no seu todo. Ou seja, precisa ter a sua dimensão biológica, emocional, familiar, social e também a espiritual bastante cuidada para que possa fazer bem o seu trabalho de cuidados paliativos. Não precisa ser uma pessoa religiosa porque se se perder nessa dimensão também não ajuda o paciente. O profissional de saúde — não só o médico —, que quer aproximar-se de um doente em fim de vida, precisa de ser alguém que se comprometa com a sua própria saúde.

Esse profissional precisa de ajuda para lidar com a dor e com a morte diariamente?
Sem dúvida! O cuidado paliativo é uma área de assistência que não pode ser feita isoladamente. Só em equipa é que se trabalha com qualidade e com outros profissionais que têm sabedoria para além da nossa. Eu não sou nutricionista, não sou farmacêutica, psicóloga, por isso, preciso desses profissionais para compor o meu saber médico e para promover a qualidade de vida com sentido, significado e felicidade ao doente de quem eu cuido.

Sabemos que os cuidados paliativos podem prolongar a vida da pessoa. É uma vida com qualidade?
Há muitos estudos científicos que demonstram que os cuidados paliativos podem promover um aumento do tempo de vida, com uma qualidade impecável. A pessoa tem a oportunidade de expressar as suas vontades, [nomeadamente] expressar ser respeitada.

É diferente acompanhar um idoso e uma criança em cuidados paliativos?
É diferente acompanhar cada pessoa, independentemente da sua idade, porque podemos ter 50 doentes de 40 anos com 50 histórias diferentes. A diferença diz respeito muito mais ao indivíduo e como vive a sua vida do que a idade. A diferença existe nas famílias. A expressão de sofrimento de uma família de uma criança que morre é diferente da de um idoso. O sofrimento não é maior ou menor, não existe concorrência, isso é injusto para quem sofre porque quem sofre, sofre a sua dor como a pior de todas. Quando se perde um pai não se perde um filho, mas perde-se o único pai.

É muito desonesto dizer “está tudo bem” a uma família que perde um idoso de 90 anos, só porque tem 90 anos. É um desrespeito, está tudo bem quando não é o nosso pai ou avô porque, nesse caso, dói na nossa carne. 

Quando dizemos que “vai ficar tudo bem” pode não ser por desrespeito mas porque continuamos a ter dificuldade em lidar com a morte?
Sim... 

Porque continua a ser um tabu?
“Tabu” é um prefixo que se relaciona com um segredo que precisa de ser guardado das pessoas que não o compreendem. Quando se fala de tabu em relação à morte, é como se a morte tivesse um segredo que só pode ser revelado às pessoas que estão preparadas. O problema maior é que as pessoas não se querem preparar para conhecer esse segredo, querem negar a morte. Mas negá-la não faz com que não aconteça na nossa vida. Podemos dizer “não quero falar sobre isso”, mas vamos morrer, a nossa família vai morrer, mesmo que não falemos. Preparar-se para o tabu da morte é poder abrir espaço de conversa sobre ela. Esse é um caminho que os meus livros abrem.

Prepara-se também falando sobre a morte?
Sem dúvida. É preciso explorar o nosso medo da morte. Fazer perguntas e responder. Por exemplo, há alguém doente na família que diz estar com medo, está com medo de quê? De morrer. A maior parte das pessoas respondem: “Não pense nisso, pense positivo, tenha fé, vamos mudar de médico, de tratamento, vai dar tudo certo.”

Quando a pessoa diz que tem medo da morte, merece uma outra pergunta: “Tem medo do quê? Qual é a parte da morte de que tem medo, é o antes, o durante ou o depois?” A maior parte das pessoas com quem eu trabalho respondem que têm medo do antes, do sofrimento. Quando há uma resposta para esse sofrimento, o medo dissolve-se. “Não tenha medo do antes porque sabemos cuidar desse sofrimento.”

O médico deve mentir sobre a situação em que a pessoa se encontra?
Não recomendo porque a verdade não é uma teoria, é uma experiência. 

Por vezes, o doente tem dificuldade em enfrentar a verdade?
A maior parte das vezes quem tem dificuldade com a verdade é quem fala e não quem ouve, ou seja, o paciente sabe a verdade porque a doença habita no seu corpo. Inúmeros doentes dizem-me: “Dra. Ana não diga nada à minha filha porque ela não sabe que eu sei que é cancro. Ela pensa que eu acho que é só uma bolinha.” O problema é de quem quer mentir, não é de quem vai ser protegido da verdade. É preciso deixar que a pessoa diga “quero saber ou não”. No livro há um capitulo sobre a importância de falar a verdade.

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DR

No livro também acusa as faculdades de Medicina de não prepararem os médicos para o fim de vida. Isso acontece porque a função do médico é salvar vidas?
Penso que quando estamos na universidade somos enganados. Os professores fazem-nos acreditar que vamos vencer a morte. Quando dou aulas, quero ensinar os alunos de Medicina a serem construtores da realidade e da felicidade dos seus doentes. Eles vão controlar a pressão arterial não porque tenha de estar 11/8, mas para que a pessoa possa ser feliz mais tempo, sem doença cardíaca. Precisamos de tratar um cancro para que a pessoa tenha uma vida que valha a pena viver, mesmo durante o tratamento, aliviando o desconforto. Se o médico o conseguir, esse doente vai ser feliz mesmo durante o tratamento.

O ensino está deturpado porque quer dar um poder ao médico que ele não tem. Nós não vamos lutar contra a morte, nós adiamos o dia da morte. Precisamos de ser um instrumento de alívio do sofrimento, mesmo que causemos sofrimento. Por exemplo, na quimioterapia, eu estou a inflingir sofrimento — não posso dizer ao doente que aquele é o preço a pagar para ficar bom, mas sim que aquilo é o que eu posso oferecer-lhe para que tenha a oportunidade de ser feliz. Eu cuido dos efeitos colaterais. É esse o papel dos cuidados paliativos: aliviar o sofrimento que a doença e o tratamento infligem.

Esse alívio do sofrimento pode terminar com a eutanásia?
Não. A eutanásia é uma proposta alternativa ao cuidado paliativo. A eutanásia é interromper a vida do sofredor. O cuidado paliativo é interromper o sofrimento da pessoa que quer viver. No cuidado paliativo existe o respeito por quem pede a eutanásia, mas eu não a faço porque é a antítese ao respeito pela morte natural. 

E quando o doente pede para morrer, o que é que lhe diz?
No Brasil, a prática da eutanásia é proibida, mas se fosse permitida, eu encaminharia o doente para quem a fizesse. O que eu faço é perguntar ao doente por que quer morrer. Quando responde que quer abreviar a sua vida para poupar a família, está a tirar à família a oportunidade de vivenciar esse processo, que é muito transformador. Eu posso oferecer o alívio da dor da consciência sobre a sua finitude, pondo a pessoa a dormir.

Em Portugal, esta pandemia veio mostrar-nos que os velhos existem e estão esquecidos em lares, nem sempre com as melhores condições. Também foi assim no Brasil?
Sim, eu penso que no mundo inteiro. O mundo inteiro viveu isso e é uma expressão de uma grande vergonha para uma sociedade só se deparar com a vida dos nossos velhos no momento em que eles morrem. É uma vergonha internacional.

Espero que todos os cidadãos do planeta Terra se sintam muito envergonhados por se darem conta que havia milhões de vidas escondidas nos lares e que só foi revelada a partir das suas mortes. Espero que todos tenhamos consciência do que as nossas vidas poderão significar quando envelhecermos, porque eu não gostaria que a minha vida só fosse importante no momento em que desaparecesse e fosse uma notícia no jornal. Gostaria que coisas importantes acontecessem enquanto estou viva.