Há 300 mil anos já se controlava a temperatura no fabrico de ferramentas
Investigação mostra que há 300 mil anos o aquecimento de ferramentas de sílex já foi feito de forma controlada e que isso melhorava a sua produção.
Como se fabricavam ferramentas de pedra há 300 mil anos? Nada como uma boa investigação científica para o desvendar melhor. Desta vez, uma equipa de cientistas liderada por Filipe Natálio, químico português do Instituto de Ciência Weizmann (em Israel), usou a inteligência artificial para saber a que temperaturas eram aquecidas ferramentas de sílex com, pelo menos, 300 mil anos. Resultado: propõe-se num artigo publicado na revista Nature Human Behaviour que os hominíneos (não se sabe exactamente quais) na região do Levante usavam fogo com temperaturas controladas por si para fabricar ferramentas e melhorar assim a sua produção.
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Como se fabricavam ferramentas de pedra há 300 mil anos? Nada como uma boa investigação científica para o desvendar melhor. Desta vez, uma equipa de cientistas liderada por Filipe Natálio, químico português do Instituto de Ciência Weizmann (em Israel), usou a inteligência artificial para saber a que temperaturas eram aquecidas ferramentas de sílex com, pelo menos, 300 mil anos. Resultado: propõe-se num artigo publicado na revista Nature Human Behaviour que os hominíneos (não se sabe exactamente quais) na região do Levante usavam fogo com temperaturas controladas por si para fabricar ferramentas e melhorar assim a sua produção.
Estudos anteriores já tinham revelado provas de que hominíneos produziam de forma sistemática ferramentas de sílex no Levante durante o Paleolítico Inferior Tardio (entre há 420 mil e 200 mil anos). A presença de artefactos de sílex queimados indicava que essas ferramentas tinham sido expostas, de alguma forma, ao fogo. Mas como é que isso acontecia? E era feito de forma intencional?
Para responder a estas questões, analisaram-se ferramentas de sílex da gruta de Qesem, em Israel. A secção da gruta de onde foram tiradas está datada entre os 400 mil e os 300 mil anos. “A gruta de Qesem é conhecida por os seus habitantes terem hábitos diferentes e [usarem] novas tecnologias”, contextualiza ao PÚBLICO Filipe Natálio. O químico exemplifica que estes habitantes foram os primeiros a fazer lâminas de pedra fora de África. “Costumo dizer que, por esta altura, esta região do globo já era uma start-up nation [uma nação empreendedora].” Nessa altura, os hominíneos usavam machados de pedra na caça de elefantes.
Contudo, os elefantes foram desaparecendo e os hominíneos tiveram de começar a caçar outros animais, como gazelas. “Pensa-se que os machados de pedra eram ineficientes e esta necessidade de adaptação fez com mudassem de estratégia em relação ao tipo de ferramentas.” Terão então surgido as lâminas, que seriam mais eficazes a cortar pequenos animais. “Imagine cortar um bife com um machado”, compara Filipe Natálio. Foi aqui que surgiu a questão: como se produziam essas lâminas com um gume afiado e resistente?
A equipa de Filipe Natálio usou a inteligência artificial para construir modelos que conseguiram prever as temperaturas a que as ferramentas de pedra foram aquecidas. Depois, aplicaram-se esses modelos a diferentes tipos de ferramentas de pedra descobertas na gruta Qesem, em Israel.
Ver comportamentos nas pedras
Concluiu-se então que o aquecimento dos instrumentos de sílex tinha sido feito de forma controlada. Como o sílex é “altamente heterogéneo”, Filipe Natálio indica que é difícil para os humanos investigá-lo mesmo com técnicas avançadas de análise visual. Mas tudo se torna mais fácil se se recorrer à inteligência artificial. Depois de se ter obtido dados sobre as ferramentas através da espectroscopia, desenvolveram-se algoritmos e conseguiu-se estimar e quantificar a temperatura a que as ferramentas foram aquecidas. Funcionou mesmo como se os cientistas tivessem um termómetro.
Observou-se que os hominíneos fabricavam as lâminas a temperaturas mais baixas (259 graus Celsius) do que as lascas (413 graus Celsius). Para validar o modelo de inteligência artificial, ainda se calculou a temperatura a pedras reconhecidas pelos arqueólogos como estando expostas a temperaturas elevadas. Viu-se que essas pedras eram aquecidas ainda a temperaturas mais altas (447 graus Celsius). Ao se recriaram ainda as condições semelhantes de aquecimento na altura, percebeu-se que a temperatura a que as lâminas de sílex foram aquecidas melhorava a sua produção.
“O sílex, como qualquer outro material, quando é aquecido modifica as suas propriedades”, explica Filipe Natálio. “Mas, no caso do sílex, se as temperaturas forem muito altas, como se encontram nas fogueiras (cerca de 600 graus Celsius ou mais), a rocha explode, literalmente.” Para que pudesse fazer tudo isto, a equipa aponta que os hominíneos já teriam de raciocinar de forma abstracta e demonstrar uma intenção em relação ao controlo do fogo.
Filipe Natálio ressalva que, quando fazemos uma fogueira (ou até um churrasco), se atingem entre 500 e 700 graus Celsius. Portanto, para si, o mais interessante neste trabalho é que se conseguiu ver que os hominíneos já conseguiam baixar essa temperatura em cerca de 200 graus Celsius no fabrico dos instrumentos de sílex. Para isso, enterrariam esses materiais e aqueciam-nos depois por cima, para que esse aquecimento ocorresse de forma homogénea. “Era como se estivessem a cozinhar as pedras! Conseguiam regular a temperatura”, frisa. Tudo isto mostra, para a sua equipa, que realmente havia uma cadeia de pensamento e que era feito um planeamento. “Conseguimos ver comportamentos através das pedras.”
E qual a espécie que terá feito essas ferramentas? Até agora, apenas foram descobertos alguns dentes na gruta e Filipe Natálio relembra que esses dentes não encaixam nem com os dos neandertais nem com os do Homo sapiens (a nossa espécie). “Pensa-se que serão de uma espécie [do género Homo] que evoluiu localmente”, adianta. Este estudo permite-nos então observar (um pouco) o comportamento humano há milhares de anos através das pedras. Filipe Natálio conclui: “Permite-nos ‘ver’ que o género Homo era já capaz de raciocinar, planear, controlar o fogo e de ter intenções em relação a uma função criada por necessidades ambientais para assegurar a sua sobrevivência.”