Falsificação de contas da Pescanova reaviva pressão sobre auditoras

Auditora BDO, uma das grandes a nível mundial, foi condenada em Espanha por cumplicidade na falsificação das contas do grupo de pescado. Caso desperta a sociedade para os deveres das auditoras na prevenção do crime económico.

Foto
A Pescanova criou uma unidade de aquacultura em Portugal, na Praia de Mira Adriano Miranda

A auditora das contas da Pescanova não sai bem da história de 60 anos da empresa galega.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

A auditora das contas da Pescanova não sai bem da história de 60 anos da empresa galega.

O escândalo das irregularidades e falsificação da contabilidade faz correr tinta desde 2013 e não terminou esta semana quando o tribunal central espanhol (Audiencia Nacional) condenou o antigo presidente da empresa, Manuel Fernandez de Sousa, a oito anos de prisão por manipulação das contas.

O braço espanhol da auditora BDO — uma das maiores empresas de consultoria e auditoria a nível mundial — foi dada como culpada pelo envolvimento nos crimes de falsificação de contas anuais e falsificação de informação económica e financeira, e terá de pagar parte da multa de 126,8 milhões de euros, decidida pelo tribunal para cobrir as perdas provocadas a quem investiu na multinacional de produtos do mar assumindo como boas as contas que tinham sido falseadas entre 2010 e 2012.

O tribunal considerou que a auditora foi cúmplice. O El País refere-se a este caso como um marco histórico, por ser a primeira vez que um tribunal espanhol condena uma das mais conhecidas auditoras a uma multa expressiva, assim como o sócio que assinou as contas a três anos e seis meses de prisão.

O caso expõe falhas que mostram a importância de as auditoras cumprirem os deveres de controlo e diligência das sociedades comerciais no quadro da prevenção dos crimes económicos e financeiros, bem como do branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo.

Além da condenação do antigo líder, foram condenados a penas de prisão entre seis a três anos e meio outros 11 responsáveis de topo (e absolvidos sete outros acusados).

O caso remonta à crise financeira de 2008. Pressionado a garantir financiamento bancário para cobrir o esforço de investimento realizado nos anos anteriores, o então presidente da Pescanova “planeou, em conjunto com um núcleo de pessoas da sua confiança, incluindo os responsáveis ​​dos departamentos administrativos e financeiros, continuar a obter financiamentos através de uma série de mecanismos ou práticas de financiamento irregulares”, refere a Audiencia Nacional num resumo da sentença publicado no site do tribunal.

O tribunal refere a “falta de controlo adequado por parte do responsável pelo auditor externo, cargo ocupado por Santiago S.F., pertencente à empresa BDO Auditores SL, que não colocou qualquer objecção à formulação das contas e demais documentos oficiais que a entidade devia dar a conhecer à Comissão Nacional do Mercado de Valores Mobiliários [equivalente à portuguesa CMVM]”.

Validadas as contas, os resultados elaborados “ficticiamente” foram apresentados como bons e assim divulgados ao mercado, levando investidores singulares e empresas a investir “quantias significativas de dinheiro” que acabaram por perder porque “a realidade da situação económico-financeira de Pescanova” era, na verdade, “muito diferente” daquela que estava publicada.

A BDO foi contratada pela Pescanova como sociedade de revisores oficiais de contas em 2002 e, diz o El País, emitiu a certificação legal das contas anuais e consolidadas do grupo de 2010, 2011 e 2012 de forma fraudulenta. O tribunal, diz o jornal espanhol com base na sentença, deu como provado que a auditora cometeu fraude “fazendo constar que [a documentação da empresa] expressava a verdadeira situação patrimonial e financeira” da empresa pesqueira.

O jornal económico Expansión escreve que este episódio vem aumentar a pressão sobre as grandes auditoras em Espanha, antecipando que este acontecimento marque um antes e depois no sector da auditoria no país.

A BDO é uma das grandes firmas de consultoria e revisão de contas a nível mundial. Não é uma das “big four”, como são conhecidas a PwC, a Deloitte, a EY e a KPMG), mas é uma das principais do mercado. Além de estar exposta pelas falhas deste caso, a BDO tem um problema para resolver por causa da multa e, refere o Guardian, não é certo que impacto isso terá nas firmas de outros países, mesmo que a unidade espanhola seja uma entidade com as operações separadas.

O jornal britânico refere que a empresa vai recorrer da decisão, mas o site da BDO de Espanha não tem qualquer esclarecimento sobre o caso.

Em Portugal, um episódio recente que veio expor as fragilidades do sector da auditoria foram os ficheiros dos Luanda Leaks, centradas nas empresas de Isabel dos Santos. As revelações do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação, do qual o Expresso faz parte, levaram entretanto a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) a desencadear ou uma série de acções de supervisão aos auditores que trabalharam com as empresas ou com as pessoas visadas e encontrou irregularidades que deverão ser participadas ao Ministério Público, para este decidir se as falhas nos deveres de prevenção do branqueamento de capitais devem ser investigadas criminalmente.

A CMVM avançou com dez acções de supervisão sobre nove auditores referidos nos ficheiros e, até ao final de Setembro, concluiu cinco acções (relativas a quatro auditores), tendo em curso as outras cinco acções (sobre cinco auditores). A PwC, referida nos documentos do consórcio de jornalistas por trabalhar para empresas do universo da filha do ex-Presidente de Angola, deu a conhecer há dias um novo Código de Conduta Global para Terceiros, no qual define “os padrões mínimos de integridade e conduta” que consultora “espera que os terceiros com quem faz negócios respeitem e cumpram integralmente”.

Insolvência e retoma em Mira

O caso da Pescanova também acabou por se reflectir nas operações da empresa em Portugal. Em Espanha, os problemas da multinacional obrigaram a uma alteração accionista e à criação do Grupo Nueva Pescanova em 2015 e tiveram reflexos também na operação portuguesa.

A multinacional abrira em 2009 uma unidade de aquacultura de pregado em Portugal (Acuinova), na Praia de Mira (distrito de Coimbra), financiado pela Caixa Geral de Depósitos, BCP e BES (actual Novo Banco). Mas no meio dos problemas financeiros, o braço português entrou num Processo Especial de Revitalização de Empresas (PER); em 2017, os bancos credores acabaram por vender à empresa Ondas e Versos a totalidade das acções que tinham assumido na empresa; entretanto, o projecto foi declarado insolvente, mas esse processo acabaria por ser encerrado com Novembro de 2018 com a aprovação de plano que prevê a continuidade da empresa.

A sentença do tribunal de Madrid também revela um episódio que se relaciona com Portugal. Depois de se saber que as contas “não reflectiam a situação real da Pescanova”, Manuel Fernandez de Sousa e a mulher “retiraram 4,5 milhões de euros das contas em Espanha e depositaram o dinheiro em dois bancos” em Portugal, na cidade de Valença. Tentaram transferir o dinheiro para uma conta já aberta em Hong Kong, mas a operação, refere o Expresso, foi travada pelas autoridades portuguesas por ser considerada suspeita.