Pianista Joana Gama desvenda-nos O Livro dos Sons

Dez anos depois de se maravilhar com a obra do alemão Hans Otte, a pianista estreia na Culturgest a sua interpretação de O Livro dos Sons. A partir de sábado, a sala lisboeta disponibiliza um conjunto de seis peças inspiradas por Otte, pela mão de Pedro Melo Alves, Helena Espvall ou Norberto Lobo.

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Intérprete apresenta esta sexta-feira a obra de Hans Otte na Culturgest, em Lisboa vera marmelo

A história é bonita e parece até saída de um argumento cinematográfico. Estava Joana Gama muito descansada na sua vida, em Maio de 2010, poucos dias depois de ter estreado a sua viagem ao universo do compositor francês Erik Satie, quando recebeu um email enviado por um amigo com o título “Hans Otte” e a breve mensagem no corpo de texto “Para o caso de não conheceres”. Habitualmente, confessa a pianista em conversa com o PÚBLICO, o conteúdo deste tipo de email é guardado numa pasta no computador com um nome do género “Música para ouvir quando tiver tempo”. Por alguma razão que nem a própria sabe explicar sem ter de valer-se de alguma teoria que se prenda com o destino ou as pedras que caem no nosso caminho para que nelas tropecemos, em vez de adiar a escuta e, talvez, nunca chegar a abrir o dito ficheiro, deu imediata atenção ao primeiro andamento de O Livro dos Sons, a obra-prima do tal alemão desconhecido chamado Hans Otte (1926-2007).

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A história é bonita e parece até saída de um argumento cinematográfico. Estava Joana Gama muito descansada na sua vida, em Maio de 2010, poucos dias depois de ter estreado a sua viagem ao universo do compositor francês Erik Satie, quando recebeu um email enviado por um amigo com o título “Hans Otte” e a breve mensagem no corpo de texto “Para o caso de não conheceres”. Habitualmente, confessa a pianista em conversa com o PÚBLICO, o conteúdo deste tipo de email é guardado numa pasta no computador com um nome do género “Música para ouvir quando tiver tempo”. Por alguma razão que nem a própria sabe explicar sem ter de valer-se de alguma teoria que se prenda com o destino ou as pedras que caem no nosso caminho para que nelas tropecemos, em vez de adiar a escuta e, talvez, nunca chegar a abrir o dito ficheiro, deu imediata atenção ao primeiro andamento de O Livro dos Sons, a obra-prima do tal alemão desconhecido chamado Hans Otte (1926-2007).

Esse primeiro contacto havia de fazer-se com uma gravação do próprio compositor da peça estreada em 1982 e que encantou Joana Gama de imediato. “Fiquei mesmo maravilhada com aquele primeiro andamento”, recorda. “Tanto assim que fui logo procurar o resto da obra, comecei a ler sobre o compositor e fiquei absolutamente fascinada com aquela pessoa.” O encantamento foi tão intenso que nos dias seguintes comprou as partituras a que conseguiu deitar a mão e não tardou a contactar Ingo Ahmels, antigo assistente do compositor e autor do livro bilingue Hans Otte – Kang der Klänge / Sound of Sounds. O livro de Ahmels acabou, afinal, por constituir a base de todo o seu estudo sobre Otte, e o investigador acabou também por tornar-se um parceiro com quem a pianista foi discutindo e desenvolvendo a ideia de trabalhar sobre a obra de um autor próximo de John Cage — Ahmels, cita Joana Gama, diz que “Otte era um evolucionário enquanto Cage era um revolucionário” — mas que, por razões que se prenderão com a sua prioritária dedicação ao cargo de director da Radio Bremen e de festivais dedicados à música antiga e à música contemporânea, ficou arredado de um reconhecimento global.

Em entrevista, Hans Otte chegou mesmo a mostrar-se agradecido a John Cage por este o “ter alertado para os sons tal como eles são”. Apesar disso, nota a pianista, os dois seriam compositores “diametralmente opostos, porque Hans Otte fez uma música muito pessoal, mas que veio completamente da tradição da música clássica”. Ou seja, se a obra de Otte chega a lembrar autores como Debussy, Chopin ou um minimalismo — que não aquele que conhecemos de Terry Riley ou Philip Glass —, em 1982, quando estreou O Livro dos Sons, “o piano já tinha sido virado do avesso e dado as cambalhotas todas”, comenta Joana Gama. “John Cage, por exemplo, já tinha em Sonatas and Interludes desvirtuado o som puro do piano. O Hans Otte, por seu lado, mostra que, afinal, o piano pode soar de maneira diferente sem nenhum artefacto. E isso é muito bonito.”

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À medida que investigava a vida e a obra de Hans Otte, Joana Gama foi questionando músicos e compositores, portugueses e estrangeiros, se alguém estava familiarizado com a obra do alemão. Os casos com alguma ligação a Otte revelaram-se tão raros que foi ficando “sempre muito intrigada” com este apagamento da História da música do século XX. “Também por isso”, explica, “fiquei com vontade de divulgar a sua obra.” Depois de uma primeira tentativa gorada em 2013, com o apoio do Goethe Institut — onde a pianista apresentou esta quinta-feira uma palestra em que partilhou algumas das histórias e observações que foi desenterrando ao longo dos anos —, a intérprete apresenta amanhã O Livro dos Sons, na Culturgest, em Lisboa. Com a ajuda de Ahmels, a ideia inicial passava por uma acção mais ambiciosa em torno de Hans Otte, aproveitando o facto de a sua obra se estender a “pequenas peças para piano, teatro musical, peças para outros instrumentos a solo e esculturas sonoras”, descreve a pianista.

Espalhando a palavra

Desse plano maior, que há-de ter seguimento em momentos futuros, restou uma proposta tripla: a palestra de Joana Gama no Goethe Institut, o concerto de O Livro dos Sons na Culturgest e o filme-concerto que reúne seis composições encomendadas a Bernardo Álvares, Helena Espvall, Joana da Conceição, Norberto Lobo, Pedro Melo Alves e Violeta Azevedo, sob o título genérico Abrindo o Livro dos Sons, disponibilizadas no site da sala lisboeta a partir de dia 10. A ideia partiu de Pedro Santos, programador de música da Culturgest, ao ser contagiado pelo fascínio de Joana Gama por Hans Otte. “Quando a Joana abraça os projectos fá-lo sempre com muito entusiasmo, muita dedicação e um espírito de partilha muito grande — algo que, no fundo, acaba por ser um pouco aquilo que gosto de fazer na minha programação”, diz Pedro Santos ao PÚBLICO.

Ao escutar O Livro dos Sons e sentir que a música ressoava em si também com evidente intensidade, Pedro Santos acabou por desenhar o programa complementar Abrindo o Livro dos Sons em resposta aos tempos de pandemia. “Houve um primeiro objectivo ligado à vontade de permitir que alguns músicos pudessem continuar a ter encomendas e a criar nova música – isso era extremamente importante quando fui percebendo que a nossa cena estava parada e que havia pessoas com problemas em pagar a renda e subsistir mais um mês”, conta. Em segundo lugar, pensando na possibilidade de poder verificar-se um segundo confinamento, a disponibilização online de Abrindo o Livro dos Sons deixa, desde já, uma proposta que pode ser fruída em qualquer momento futuro. Ao aliar estas vontades à partilha da obra de Otte com os seis músicos acima referidos, e evitando estrategicamente pianistas para que não houvesse a tentação de releituras coladas à obra original, as seis peças foram filmadas em diferentes locais do espaço público da Culturgest, em execuções a solo que podem ser vistas e escutadas a partir de sábado.

Para Joana Gama, a ligação à instabilidade presente far-se-á sobretudo pela via contemplativa e do espaço para — como lhe chama Otte — “penetrar nos sons e deixar que eles ganhem vida”. “Numa altura em que temos toda esta incerteza e em que somos bombardeados com informação, muita dela lixo da internet, até mesmo sobre o vírus, a possibilidade de parar e escutar esta música é um convite que pode ser interessante”, acredita a pianista. A ideia, amanhã e depois, é essa: parar e reclamar um tempo que parece ter desaparecido destes dias desassossegados.