“A Medicina ainda dá?”
Afinal o que é que a Medicina ainda dá? Dá dores de cabeça! Dá responsabilidade, dá compromisso, dá tristeza quando a doença vence a cura, dá angústia e impotência quando já só podemos oferecer o ouvido e a compreensão.
— “Dr. Bruno, a Medicina ainda dá?” — pergunta o “Sr. Manuel” no final da consulta, depois de (mais) um sermão por causa de uma diabetes (outra vez) descompensada. Desta vez a culpa é da pandemia, que não o deixou fazer exercício físico.
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— “Dr. Bruno, a Medicina ainda dá?” — pergunta o “Sr. Manuel” no final da consulta, depois de (mais) um sermão por causa de uma diabetes (outra vez) descompensada. Desta vez a culpa é da pandemia, que não o deixou fazer exercício físico.
Perante a surpresa da questão e desentendido, pergunto:
— “Ainda dá o quê?”
— “Dinheiro! Havia de ser o quê?” E conclui: “Sabe, a minha filha é muito boa aluna e tem média para Medicina, mas eu gostava de saber se ainda dá. Ouço os médicos a queixar-se, mas vocês queixam-se de barriga cheia, não é?”
Inspiro fundo e interrogo-me de onde continua a vir esta ideia. Será do antigamente, quando o médico trabalhava noite e dia para manter um automóvel topo de gama? Não será certamente dos “ostentatórios 1700 euros limpos” que recebo mensalmente, e que possivelmente receberei até à reforma (se a chegar a ter), uma vez que a progressão na carreira médica parece estar morta e enterrada.
Afinal o que é que a Medicina ainda dá? Dá dores de cabeça! Dá responsabilidade, dá compromisso, dá tristeza quando a doença vence a cura, dá angústia e impotência quando já só podemos oferecer o ouvido e a compreensão, dá saudade da família e dos amigos, dá ausência da ceia de Natal e de tantas outras festas, dá revolta por não ver a cadeia de comando reconhecer o nosso esforço…
Mais do que o retorno financeiro, o mais inquietante neste momento é a despreocupação com as condições de trabalho dos profissionais. O modelo de gestão mantém-se de cima para baixo (“top down”) , os profissionais no terreno continuam a não ser ouvidos e a sua insatisfação é constante a cada questionário. Os concursos de colocação arrastam-se, as mobilidades são um problema, a formação é longa e a indefinição da colocação final impede muitas vezes a planificação da vida pessoal. A instabilidade laboral perturba a gestão de expectativas. A sobrecarga de trabalho e a escassez de tempo são colossais. O exemplo da desproporcionada lista de Utentes dos Médicos de Família é paradigmático desta sobrecarga, pois consome demasiado tempo e obriga a um esforço desmesurado para garantir a qualidade, a acessibilidade e disponibilidade de cuidados.
Lembro-me de alguém ter dito um dia que os escravos de uma ideia são demasiado fiéis para desistir. E nós somos escravos e fiéis à paixão que nos move, de cuidar da saúde do doente, que nos faz ficar depois da hora, pois não podemos fechar a porta às 20h quando o doente ainda nos está a contar as amarguras. É esta paixão que nos faz resistir aos sistemas informáticos desintegrados, à eterna ausência de interacção entre cuidados hospitalares e cuidados de saúde primários, que nos faz lutar contra o desinvestimento na saúde, contra a ausência de ideias de mudança, contra a falta de incentivo na qualidade da prestação de cuidados. É esta crença na ideia de honrar a profissão que nos faz transcender e acordar novamente amanhã com o sentimento de missão.
Expiro, e respondo:
— “Sr. Manuel, lamento! Não sei se algum dia ‘deu’, mas neste momento a Medicina só ‘dá’ para viver. Se a razão para ser médica for só essa, diga à sua filha para seguir por outro caminho que a realize e a faça feliz. Porventura, se a motivação for a vontade de ajudar, de fazer o bem, de poder cuidar do outro, de sentir realização por acertar num diagnóstico. Se for a vontade de superação e de ser mais forte no dia seguinte perante a adversidade e a resiliência… nesse caso a sua filha será bem-vinda.”