Do bom e do mau governo

Que pensar, caro leitor, por que caminhos se perderam as laudes civitatis que são penhor do bom governo no fresco de Lorenzetti? No tempo actual, a arrogância, sobranceria e a presunção de impunidade do Poder designa-se por hubris, e não costuma ter bom fim. O que me preocupa foi a incapacidade de em seis anos de Governo socialista não se terem realizado as reformas necessárias que teriam preparado melhor o país para este embate.

O voi ch’avete l’inteletti sani
Dante Alighieri (1265 -1321), Divina Comédia Inferno, canto IX

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O voi ch’avete l’inteletti sani
Dante Alighieri (1265 -1321), Divina Comédia Inferno, canto IX

Regresso em pensamento a Siena, Palazzo Pubblico, sala do governo dos Nove. Era visita obrigatória, sempre que anualmente me convidavam para um encontro científico da minha área, no tempo pré-pandemia e nesta maravilhosa cidade toscana. Agora, é recordar a Alegoria do Bom e do Mau Governo de Ambroggio Lorenzetti (1290-1348), obra em enormes frescos (affrescos), pintura mural baseada na aplicação da cor directamente na argamassa ainda húmida, para que a pintura se incorporasse na construção arquitectónica onde foi aplicada.

Materializou o que Élie Faure [1] designou pelo estilo intelectual italiano porque incorporava a força dos símbolos numa figuração precisa da realidade, consubstanciando a preocupação pelo intelecto sadio e judicioso – O voi ch’avete l’inteletti sani, como escreveu Dante [2]. Com um detalhe prodigioso e uma clareza eterna, retratam de um lado a sociedade feliz, organizada, funcional à qual presidem as virtudes civis (laudes civitatis) da Justiça, da Prudência, da Temperança e Magnanimidade, com as figuras dos anjos sobre o rei simbolizando a Caridade (Caritas, no sentido da preocupação pelo bem público), a Fé e a Esperança. Noutro fresco, evidencia a sociedade feliz, com os cidadãos empenhados nas suas tarefas dentro e fora dos muros da cidade, sob a égide protectora da figura alada representando a Segurança. Requisitos e atributos do bom governo.

No outro fresco, o contraste, a desordem, peste, fome e destruição, o sofrimento, as consequências do Mau Governo, do tirano que esqueceu as virtudes cívicas e usou a Maldade, Crueldade e Traição, o Orgulho, a Avareza e Vã Glória, o governo escoltado pelas potências da confusão, como escreveu Duby [3] que facilitaram corrupção, irresponsabilidade, guerra e sofrimento. Mas nestes affrescos monumentais sobressai, entre as virtudes cívicas, a Justiça inspirada pela Sabedoria, uma alegoria também neste atribulado Presente onde mais do que nunca se precisa de Isenção, Independência e Verdade para que prevaleça como virtude primeira das instituições sociais, como escreveu John Rawls [4].

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Ambrogio Lorenzetti (1290-1348), "Alegoria do Bom Governo" (1337-1340), Siena, Palazzo Pubblico, Sala dei Nove

Descrever e perspectivar na história da nossa cultura o significado da obra de Lorenzetti é tarefa que me ultrapassa. A Itália e a sua Arte continuam a ser a inspiração que atraiu os espíritos de intelecto são e com curiosidade, e foi certamente na memória da sua contribuição para a Cultura que os italianos reencontraram o espírito e a determinação para vencer mais esta adversidade do Tempo.

Que tem isto a ver com a nossa realidade? Tudo. Da paupérrima dialéctica política que culminou na discussão parlamentar inenarrável sobre o Programa de Reconstrução e Resiliência, à saga sobre a aprovação do Orçamento do Estado, entre a chantagem de crise e a confusão em que se dilui a responsabilidade de governar, das múltiplas promessas não cumpridas de que ninguém quer falar, aqui tem, caro leitor, as razões para recuperar esta alegoria medieval em tempo de Pandemia.

Ao observador interessado a realidade aparece como se o Governo socialista, em funções efectivamente há seis anos, não tivesse plano organizado e estruturado, uma carta de navegação para ultrapassar as carências e disfunções da sociedade nacional que claramente tinham identificado como objectivo desde o início desta nova experiência governativa. Navegação à vista, aproveitando ventos favoráveis não para colmatar falhas e insuficiências que existiam na Saúde, na Educação e que a Pandemia veio por a nu. Satisfação de clientelas políticas mais do que as difíceis reformas que eram e continuam a ser necessárias. Nas contas certas e no excedente orçamental, boas opções, reconheço, não é possível descartar o efeito de uma política de cativação financeira com impacto nos grandes serviços públicos. Da reforma das instituições e do seu mecanismo de funcionamento é que pouco ou nada se viu de consequência.

Onde ficaram as promessas de 2016, da renovação do parque hospitalar, começando pelo Hospital de Todos os Santos – sobre o qual devem ter recaído todas as maldições do último meio século – aos outros hospitais que foram bandeira e desígnio político? E a renovação dos quadros médicos e de enfermagem de forma planeada e lógica e não ao ritmo das reivindicações ou das necessidades? Melhorou-se o financiamento do SNS? Reduziu-se o desperdício? Talvez, mas como se evidencia no quadro I, onde se mostra a evolução do financiamento público da Saúde e do Produto Nacional Bruto (PNB), desde o colapso financeiro a que nos conduziu a anterior experiência socialista ao ritmo ascendente desde 2012, que foi maior que a subida do PNB em 2012 e 2013, mas parou em 2017 [5].

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Quadro I: Evolução comparativa entre despesa pública em saúde e PNB

Isso, mais ausência de reforma substantiva na organização do sistema de saúde, lidando de forma criativa e transformadora com a realidade dum sistema misto sem o qual o SNS ficará muito mais aquém na satisfação das necessidades. A nova Lei de Bases foi oportunidade desperdiçada, privilegiou fidelidade a ideologia serôdia que a História condenou há décadas. Como a péssima decisão das 35h semanais, em vez de pagar adequadamente as 40h em vigor, esses erros foram ónus que condicionaram a adaptação ao imprevisível, ao inesperado.

Já muito se comentou sobre a impreparação, atraso e confusão na reacção inicial à Pandemia, e tempo virá para que os governos, como as pessoas, façam o seu luto, isto é, reflictam sobre os erros cometidos para os não repetir, mas esse tempo ainda não chegou com seriedade e elevação à nossa Política. E o problema das instituições de Cuidados Continuados e os Lares para os seniores? Um dos mais graves problemas do nosso Estado Social, a despesa pública em Portugal é muito baixa e bem inferior à média da UE. Recordo o projecto de aquisição pela Santa Casa da Misericórdia das instalações do Hospital Militar e Casa de Saúde da Família Militar para as transformar numa grande instituição de Cuidados Continuados. Onde está? Que aconteceu? Castigo por ter sido negócio ainda ultimado pelo anterior provedor, proveniente de outra família política?

De tudo, e de todas as promessas não cumpridas, se fez tábua rasa, primeiro, em nome da solidariedade nacional e do espírito de unidade. Depois, por comodismo e por inércia. Pensar dá trabalho. Dos erros cometidos não se retiraram ilações e consequências. E tudo permanece inalterado, desde a péssima estratégia de informação pública, ao modelo seguido para o diálogo entre cientistas e decisores políticos, à falta de transparência no acesso aos dados concretos – raw data – pela comunidade científica não acantonada no sector oficial da Saúde Pública, ao desencontro entre as expectativas suscitadas por medidas anunciadas, mas impossíveis de concretizar com eficácia. São exemplo a constituição das brigadas sanitárias – quantas e onde? – e temo que o seja também a manutenção da mesma estrutura de combate ao recrudescimento ou segunda vaga, com as mesmas limitações no tratamento das outras doenças e o bloqueio dos principais hospitais do SNS. O que veio ontem a público sobre o número de intervenções e consultas não realizadas, mesmo que expurgado de possíveis repetições, é avassalador. E qual a resposta? Porque se perderam os meses mais tranquilos do Verão?

Permitam-me um exercício de memória. Após o desconfinamento, e perante a incapacidade real de providenciar uma rede de transportes públicos que minimizasse risco de contágio nas grandes áreas urbanas – como, aliás, chamou a atenção o presidente da CML –, a resposta do ministério responsável traduziu uma relação muito peculiar com a Verdade dos factos, substituída por uma estratégia de damage control, de gestão das expectativas e de conveniência política. Apresentar como conclusão que enchentes nos comboios suburbanos não seria factor relevante na disseminação da doença, baseando-se num estudo, porventura interessante de instituição académica, sobre a prevalência da infecção covid-19 em aglomerados urbanos próximos ou mais longínquos de estações de comboio, mas que nunca permitiria tirar tal conclusão, como os seus autores vieram agora esclarecer, ilustra uma forma de governar que não apoio. Serviu para esconder a real incapacidade de reorganizar os transportes públicos. Isso e o grande exemplo do bom negócio que poderia ser ensinado aos europeus (sic) sobre a aquisição de carruagens em segunda mão, que afinal não eram utilizadas por contaminação com amianto! Será mesmo verdade ou fake news suscitada por adversário político? Como a notícia recente da compra de grande número de novos comboios, que se vai descobrindo à medida que se lê que a decisão ainda está dependente de concursos, de efectivação da electrificação de linhas, e que na melhor das hipóteses em 2029 haverá algumas novas composições em circulação. Mas modernizar a via-férrea não era um objectivo anunciado no programa logo em 2015? Ou estarei enganado?

Que pensar, caro leitor, por que caminhos se perderam as laudes civitatis que são penhor do bom governo no fresco de Lorenzetti? No tempo actual, a arrogância, sobranceria e a presunção de impunidade do Poder designa-se por hubris, e não costuma ter bom fim. O que me preocupa foi a incapacidade de em seis anos de Governo socialista não se terem realizado as reformas necessárias que teriam preparado melhor o país para este embate. Há meses, Itália, Espanha e França pareciam desesperar e Portugal parecia um oásis – o milagre português –, que rapidamente se percebeu não ter tido consistência. Mas espero que a evolução no futuro imediato nos poupe aos problemas que vemos em Madrid, Marselha, Londres e outras cidades inglesas e que tenha sido definida uma estratégia de acção consequente e realista. E mais uma vez chamo a atenção para a forma como se tem vindo a deteriorar o relacionamento com as profissões da Saúde – dos médicos, diria ofensa, e relembro o que já escrevi: once a king always a king – quando mais do que nunca se precisa do seu empenhamento, dedicação e capacidade de sacrifício.

Há, infelizmente, uma nova forma de comunicar a governação aos cidadãos, e o profeta dos novos tempos foi George Orwell no seu livro magnífico 1984 ao cunhar a expressão double speak, a duplicidade na linguagem, uma narrativa que escamoteia a realidade dos factos. Os ditos teóricos dos totalitarismos, à direita e à esquerda, falam em realidade alternativa, mentira propalada sem limite nem crítica agora nas redes sociais com uma dinâmica que parece imparável e que serve para as mais torpes actuações, totalmente inesperadas em democracias tidas como exemplares. É um verdadeiro atentado às virtudes civis que, de Lorenzetti até hoje, inspiraram a nossa cultura de serviço público e procura do Bem Público, a arte do Bom Governo. Na parte inferior do affresco, passando quase despercebido, um poema explica o sentido da obra para o visitante: Onde reina esta santa virtude (a justiça) a pluralidade das almas é induzida à unidade, as que, assim reunidas, dão-se ao bem comum.

P.S.: Um milhão de mortos no mundo por covid-19. O que significa? Quantos mortos por AVC, enfarte do miocárdio, cancro, acidentes, demências? Chamo a atenção para os seguintes factos publicados no Boletim da Organização Mundial da Saúde: em 2016 morreram no mundo 15,2 milhões de pessoas por doenças cardiovasculares, doença respiratória crónica três milhões, diarreias 1,4 milhões, acidentes de viação 1,4 milhões, dos quais 70% homens e rapazes, e demências, já em 2016, a 5.ª causa de mortalidade global. Veremos no fim do ano, mas a tendência tem sido crescente nos últimos anos da década que passou. Provavelmente chegaremos aos 1,5 milhões por covid-19 no fim de 2020. Sem dúvida, um problema de Saúde Pública importante e que requer intervenção, mas há que relativizar. Morre muito mais gente por causa de morte prevenível por intervenção médica adequada e oportuna e isso não pode nem deve ser menosprezado. O Estado e o Sistema de Saúde não podem ficar reféns do vírus SARS-CoV-2 e ignorar a montanha, que é tudo o resto.

Referências:

[1] Élie Faure: Histoire de l’Art. L’Art medieval. Livre de Poche
[2] Dante Alighieri: La Dvina Comédia – Inferno, canto IX
[3] Georges Duby, Michel Laclotte et Philipe Sénéchal: Histoire Artistique de l’Europe: Le Moyen Âge, 1995
[4] John Rawls: A Theory of Justice, 1971
[5] State of Health in the EU: Portugal. Country Health Profile 2019. European Observatory on Health Systems and Policies, EU