Os EUA, a China e o futuro
Os EUA querem fazer crer que o grande risco é militar, quando na realidade se sentem ameaçados pela globalização da economia e pelo vigor da economia chinesa. O problema, porém, é que a globalização tecnológica que os americanos também temem é imparável na era digital, porque acaba por penetrar todas as barreiras.
O mundo ocidental está a atravessar uma fase complexa e difícil da sua história. A razão tem que ver principalmente com o que se está a passar nos EUA, o líder incontestável do Ocidente desde o fim da Segunda Guerra em 1945. Um dos aspetos mais extraordinários da atualidade é a personalidade do Presidente dos EUA. Nos últimos dias tem afirmado publicamente que nas eleições presidenciais de 3 de novembro não existe possibilidade de eleger o seu opositor, Joseph R. Biden. Há apenas duas escolhas: eleger Donald Trump, ou, caso contrário, ele irá contestar os resultados da eleição até às últimas consequências no Supremo Tribunal, tendo como argumento que houve fraude. Já em 24 de agosto na convenção republicana o Presidente afirmou: “A única maneira de nos tirarem esta eleição é falsificá-la.” Podemos esperar que os resultados das eleições de 3 de novembro acabem por ser aceites com cordialidade, mas o facto é que os EUA estão numa grande tensão política e o mundo expectante.
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O mundo ocidental está a atravessar uma fase complexa e difícil da sua história. A razão tem que ver principalmente com o que se está a passar nos EUA, o líder incontestável do Ocidente desde o fim da Segunda Guerra em 1945. Um dos aspetos mais extraordinários da atualidade é a personalidade do Presidente dos EUA. Nos últimos dias tem afirmado publicamente que nas eleições presidenciais de 3 de novembro não existe possibilidade de eleger o seu opositor, Joseph R. Biden. Há apenas duas escolhas: eleger Donald Trump, ou, caso contrário, ele irá contestar os resultados da eleição até às últimas consequências no Supremo Tribunal, tendo como argumento que houve fraude. Já em 24 de agosto na convenção republicana o Presidente afirmou: “A única maneira de nos tirarem esta eleição é falsificá-la.” Podemos esperar que os resultados das eleições de 3 de novembro acabem por ser aceites com cordialidade, mas o facto é que os EUA estão numa grande tensão política e o mundo expectante.
Durante quatro anos o Presidente exerceu uma governação controversa que polarizou politicamente o eleitorado americano, enfraqueceu instituições e normas democráticas, unificou o Partido Republicano, que o segue de forma acrítica, desrespeitou proteções institucionais dos críticos e das minorias. A clivagem dá-se entre os republicanos, o partido dos brancos adultos ou idosos, dos rurais do interior dos EUA, dos cristãos, em particular dos evangélicos predominantemente do Sul do país, e os democratas, o partido com maior mistura de brancos e negros, dos jovens e dos residentes urbanos dos estados junto às costas leste e oeste. Não parece haver entendimento possível entre os dois grupos e cada um considera o outro como uma ameaça existencial. Vive-se uma nova cultura política alicerçada na negação, desinformação, encobrimento e em veementes acusações mútuas de fake news, ou mentiras, numa linguagem antiquada, que acaba por desvalorizar a verdade. As milícias armadas, que existem desde longa data nos EUA, estão a fortalecer-se e têm-se confrontado em várias cidades nos últimos meses. Algumas defendem a supremacia branca e vestem uniformes semelhantes aos da polícia. A venda de armas aumentou de forma significativa nos últimos meses. Desde a morte de George Floyd asfixiado com o joelho por um polícia, multiplicam-se as mobilizações antirracistas e os confrontos com os grupos supremacistas brancos. Vários americanos influentes falam do risco de confrontos violentos.
A questão, porém é mais ampla. O problema dos EUA não é apenas interno. Em termos militares, os EUA têm um poder hegemónico no mundo, mas isso está a custar-lhes cada vez mais caro. A globalização económica que beneficiou muito as grandes empresas multinacionais e a convergência económica acabaram por fazer emergir o gigante da China, que frequentemente se vaticinava não conseguir prosperar devido à rigidez do sistema de capitalismo de Estado imposto pelo Partido Comunista Chinês. Porém, as previsões falharam e a China é hoje a segunda economia do mundo com possibilidades de ultrapassar a dos EUA. Atualmente o Ocidente vive preocupado com a ascensão económica da China e com o espectro de que venha a dominar a economia mundial. Como combater essa ascensão?
A China tem um sistema que lhe garante uma grande resiliência económica. Foi ele que lhe permitiu tomar medidas drásticas de controlo efetivo da pandemia da covid-19, o que está a facilitar uma recuperação económica mais rápida do que em outros países. Em contrapartida, o Ocidente tem privilegiado medidas mais suaves que interferem menos com a liberdade individual, mas continua confrontado com um risco permanente de recaída. A nossa cultura democrática aceita as manifestações antimáscara e anticonfinamento, mas o preço acaba por se tornar mais elevado em termos económicos.
Em 2019, as despesas militares à escala mundial atingiram o valor mais alto desde 1988. Os quatro países com maior orçamento militar foram os EUA, a China, a Índia e a Rússia, com 732, 261, 71,1 e 65,1 mil milhões de dólares que representaram 38%, 14%, 3,7% e 3,4% do orçamento militar mundial (Stockholm International Peace Research Institute, SIPRI, 2020). Estes também foram os países que mais aumentaram os orçamentos em 2019 – 5,3%, 5,1%, 6,8% e 4,5% relativamente a 2018. Em 2019, existiam no mundo 13.400 armas nucleares estratégicas, 90% das quais nos EUA e Rússia, com potências superiores à da bomba nuclear de Hiroxima em dezenas a centenas de vezes (SIPRI, 2020). Excetuando os EUA, a Rússia, a França e a Índia, todos os outros países do clube nuclear – Reino Unido, China, Paquistão, Coreia do Norte e muito provavelmente Israel (cujo arsenal nuclear secreto de 90 bombas não é assumido pelo governo (SIPRI, 2020) – aumentaram o número de armas nucleares. Atualmente os EUA recusam-se a renegociar o tratado New Start assinado com a Rússia, que limita o crescimento do número de armas nucleares nestes países e cuja validade termina a 5 de fevereiro de 2021, porque insistem em que a China deverá voluntariamente aderir ao tratado, embora tenha cerca de 18 vezes menos armas nucleares do que os atuais signatários.
Os EUA asseguram a presença de instalações militares em solo estrangeiro que se estima serem em número superior a 700, distribuídas por mais de 70 países e territórios. Constituem “pequenas Américas” ou simples instalações de radar nas quais gastam mais de 100.000 milhões de dólares por ano. O conjunto de todos os outros países têm um total de 70 instalações em solo estrangeiro, sendo o Reino Unido, Rússia, França, Turquia, Índia e China os que têm maior número, com valores aproximados de 16, 15, 13, oito, seis e quatro unidades. Para apoiar este enxame de bases militares dispõem ainda de forças navais com porta-aviões, 11 deles dos EUA e um por cada país – Grã-Bretanha, Rússia, França, Índia e China. Os EUA têm no mundo seis unified combatant command, que envolvem dois ou mais ramos das forças armadas e são responsáveis por “missões abrangentes e continuadas”. Incluem as special command forces, que em 2013 realizaram missões de combate, aconselhamento e treino militar em 134 países. Em 2017, já atuaram em 147 países, ou seja, em 75% da totalidade dos países do mundo.
O poder militar hegemónico dos EUA é suposto garantir a pax americana através do mundo desde o final da Segunda Guerra Mundial, que veio substituir a pax britannica iniciada em 1815 e terminada em 1914 com o começo da Primeira Guerra Mundial. A economia dos EUA tem o maior PIB e o dólar é a moeda de reserva mundial que suporta cerca de 60% das reservas monetárias e tem a grande vantagem de ser utilizada em grande parte das transações comerciais e financeiras internacionais. Nos casos raros de países fora da órbita militar dos EUA, cujo comportamento é considerado condenável, o poder corretivo é exercido através de sanções por via económica e financeira. Atualmente há 30 países e territórios nestas circunstâncias. Com a nova Presidência de 2016, os EUA desenvolveram uma tendência para o unilateralismo e o protecionismo económico e a partir de 2018 iniciaram uma guerra comercial com a China, ao aumentar significativamente as tarifas aduaneiras dos produtos importados, com a justificação de ser necessário diminuir o défice comercial entre os dois países. Mas o défice em lugar de diminuir está a aumentar, como Joe Biden lembrou ao Presidente no debate de 29 de setembro. Este respondeu-lhe: “A China comeu o teu almoço, Joe!” A guerra dos EUA contra a China irá aumentar violentamente no futuro. Irá afetar todo o mundo?
Os principais países anglo-saxónicos – Austrália, Canadá, EUA, Grã-Bretanha e Nova Zelândia – constituem uma “família” com o mesmo idioma e com uma unidade rara baseada numa rede de interesses económicos comuns. O mundo ocidental tem o privilégio de integrar esta “família benigna” no seu espaço cultural, liderada por uma potência hegemónica, e deve estar agradecido por tudo o que essa potência fez no passado em defesa do Ocidente, especialmente durante e após a Segunda Guerra Mundial. Temos estado numa situação de grande estabilidade que se tem revelado benéfica para o Ocidente e poupado preocupações e gastos avultados de segurança e defesa à maioria dos países ocidentais. Porém, há sinais de mudança.
Na política externa o atual Governo dos EUA está empenhado em desenvolver uma nova bipolarização. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Mike Pompeo, é um cristão evangélico devoto que não perde a oportunidade de explicar os acontecimentos que promove ou presencia com base na interpretação divina. Em 22 de março de 2019, afirmou em Jerusalém ser “possível que o Presidente Trump tenha sido enviado por Deus para salvar Israel do Irão” e está convencido que “Deus está envolvido neste processo”. O seu alvo principal é a China e o Presidente Xi Jinping, que acusa de querer conquistar a hegemonia militar global. Porém, os factos não condizem, dado que, como se viu, as despesas militares dos EUA em 2019 foram 2,8 vezes superiores às da China, os EUA têm mais de 700 instalações militares em território estrangeiro e a China tem quatro, a China dispõe de 320 armas nucleares, quando a Rússia, EUA, França e Reino Unido têm 6375, 5800, 290 e 215. Seria mais compreensível se Mike Pompeo estivesse empenhado em contrariar o poder militar russo, mas as relações pessoais entre os Presidentes dos EUA e da Rússia aparentemente são boas.
Conforme se pode ler no Livro Branco da Defesa da China publicado em 2019, “a China não irá seguir o caminho já percorrido pelos big powers na procura da hegemonia”, porque “à medida que a globalização económica, a sociedade da informação e a diversificação cultural se desenvolvem num mundo crescentemente multipolar, a paz, o desenvolvimento e a cooperação vantajosa para todos continuará a ser a tendência irreversível dos nossos tempos”. Na Estratégia de Defesa dos EUA, publicada em 2018, lê-se que o objetivo do país é ser “a potência militar proeminente no mundo”. Estamos perante duas estratégias globais muito distintas. A China não descura de modo algum a sua defesa e será obrigada a reforçá-la tanto mais quanto maiores forem as ameaças exteriores, mas a via escolhida não é a da hegemonia militar e fundamenta-se no poder mais suave e construtivo do desenvolvimento e da prosperidade económica. Uma via menos belicista, mais adaptada aos desafios de longo prazo, deste século e dos seguintes, e menos perigosa. Uma via compatível com o desígnio de assegurar uma vida digna a cerca de 7800, 9700 e 10.900 milhões de pessoas em 2020, 2050 2100. A via em que há lugar para a vontade e a esperança de construir um desenvolvimento sustentável, travar a degradação ambiental, a perda de biodiversidade, a poluição e as alterações climáticas. A não ser que se esteja a pensar na via alternativa pré-milenarista do Segundo Advento ou Parúsia de Jesus Cristo no Fim dos Tempos para presidir ao Juízo Final, cujos pés chegarão ao Monte das Oliveiras a leste de Jerusalém, segundo o profeta Zacarias, e que é a fé dos evangélicos. O recente reconhecimento oficial de Jerusalém como a capital indivisa de Israel pelos EUA foi recebido com grande júbilo pelos evangélicos, dado ser uma forma de preparar o local onde se irá dar a Parúsia, afastando dele os que não têm fé na Bíblia. Na via da Parúsia, os objetivos humanos de longo prazo são irrelevantes frente ao poder divino que comanda a chegada do Fim dos Tempos que poderá estar para breve. Para quê pensar no longo prazo?
Inicialmente, no princípio do século XX, os evangélicos eram protestantes, americanos fundamentalistas preocupados com a compatibilização da autoridade da Bíblia com a modernidade. Para resolver a questão o empresário californiano Lyman Stewart, fundador da grande companhia de petróleo Union Oil, elaborou uma nova versão da Bíblia com os elementos essenciais da sua fé conhecida por The Fundamentals que constitui a base do fundamentalismo cristão moderno. Os evangélicos totalizam mais de 600 milhões no mundo e nos EUA são cerca de 25,4% da população (Pew Research Centre, 2020). No Brasil são atualmente apoiantes do Presidente Jair Bolsonaro, estimam-se em cerca de 22 milhões com tendência para crescer e ultrapassar o número de católicos dentro de uma década.
Os EUA querem fazer crer que o grande risco é militar, quando na realidade se sentem ameaçados pela globalização da economia e pelo vigor da economia chinesa. O problema, porém, é que a globalização tecnológica que os americanos também temem é imparável na era digital, porque acaba por penetrar todas as barreiras. A globalização económica é essencial para a convergência económica que diminui as profundas desigualdades de desenvolvimento e atualmente pode evitar o ressurgimento de centenas de milhões de pessoas em situação de pobreza extrema devido à pandemia da covid-19. Se o investimento da China nas últimas décadas em África, na América Central e do Sul, em partes da Ásia e na Europa não tivesse existido, ele não teria sido substituído pelo investimento americano. Mas a China não pertence à nossa cultura, a sua afirmação no mundo será combatida ou impedida. O Ocidente já reconheceu que algo está a mudar no seu exterior e no seu interior.