“Esta coisa do bem e do mal impressiona-me desde que era criança, que Deus ajuda os maus quando são mais que os bons.” Quino, autor de banda desenhada, criador de Mafalda
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
“Esta coisa do bem e do mal impressiona-me desde que era criança, que Deus ajuda os maus quando são mais que os bons.” Quino, autor de banda desenhada, criador de Mafalda
Isto anda tudo ligado
Se o generalíssimo Franco não tivesse derrotado a República Espanhola e obrigado muitos a cruzar o Atlântico, para não deixar o ditador deleitar-se com mais vítimas, uma das personagens de banda desenhada mais universais do planeta provavelmente nunca teria existido. A Mafalda é uma consequência da História, saída de um dos episódios mais terríveis do século XX para nos dar uma visão mais universalista do mundo. Que o mundo obscurantizado por um ditador nos desse, involuntariamente, o iluminado olhar de uma criança é prova de que isto anda mesmo tudo ligado. “A Guerra Civil Espanhola marcou-me muitíssimo”, afirmou Quino numa das suas últimas entrevistas (algo que não lhe agradava por aí além, ao invés de responder a perguntas preferia deixar o cenário às suas personagens), a Boy Olmi para o documentário Buscando a Quino. Filho de republicanos espanhóis que chegaram à Argentina quando ele era ainda criança, Quino parece ter ficado para sempre com uma perspectiva precoce das sombras do mundo, daí Mafalda, essa menina de seis anos que, desde 1964, se deleita a sublinhar as nossas hipocrisias sem deixar de ser criança. Quino morreu na quarta-feira aos 88 anos à procura de uma resposta para a pergunta de Mafalda que era afinal a sua: “Papá, podes explicar-me porque funciona tão mal a humanidade?”
Os electrodomésticos ajudam
Bendito dono dessa marca de electrodomésticos que não a quis. Esse senhor engenheiro, doutor, dono, gerente, capitalista que olhou para a Mafalda recém-nascida e disse, do alto da sua engalanada sapiência: “Tão feiinha, benza-a a Deus!” E a enjeitou para rosto dos seus electrodmésticos. Uma rejeição precoce que não lhe retirou a capacidade para sonhar, antes a acentuou, porque “se uma pessoa não se apressa a mudar o mundo, o mundo acaba por nos mudar”, como cita em editorial o El Tiempo. E se um jornal colombiano, com tantas coisas importantes para ressalvar no país e no mundo, dedicou o seu editorial a Mafalda e à morte do seu criador não é mudar o mundo, um pouquinho que seja, então é porque não percebemos nada disto! Porque um desenho que não servia nem para vender máquinas de lavar ensinou a milhões de pessoas (em 30 idiomas) a capacidade de perceber a hipocrisia do mundo sem deixar de acreditar no sonho, no humor e na amizade. Quino preferia não falar e deixar falar as personagens que criou, desde o universo da Mafalda até todos esses homenzinhos medíocres que passaram pelas suas pranchas para serem atirados ao mar da realidade: “Talvez o tenha feito, claro, porque a sua obra monumental e a sua figura modesta continuarão a ser uma das quantas certezas deste mundo.”
Não devíamos começar por aí?
Nem todos gostavam da Mafalda, de Quino. E havia até adultos que vociferavam imprecações públicas (e exigiam censuras) contra essa pirralha que ousava levantar as saias à Igreja, não se coibia de destapar a hipocrisia de políticos, nem de rir de ufanos e anafados poderosos. Isso mesmo diz Alfonso González Jerez no La Provincia, diário de Las Palmas, lembrando um artigo particularmente feroz do ensaísta venezuelano Carlos Rangel que descrevia Mafalda “como uma marioneta para poder soltar sandices ideológicas que, mais do que falsas, eram deprimentes”. E lembra também um argentino, cujo nome prefere manter incógnito, que via na personagem de Quino um amuse-bouche para ajudar os pequeno-burgueses a melhor digerir as refeições do mundo. “Lêem três, quatro tiras de Mafalda e desafogam-se, lavam os dentes e na manhã seguinte vão para o escritório ou para o atelier.” E se o desenho de uma menina de seis anos a virar o globo ao contrário por ter descoberto que os países menos desenvolvidos estavam no hemisfério Sul não resolve os problemas do mundo, devia servir pelo menos para nos deixar a pensar no porquê. Se até o planisfério com que nos ensinam a geografia está pejado de erros, com essa distorcida escala de Mercator que desde o século XVI agiganta a Europa no centro e subdimensiona África, não será que devíamos começar por aí?
Mais do que pessoas
Quino várias vezes disse que nunca se tinha arrependido de ter posto um ponto final na sua Mafalda. E por mais que lhe apontassem o sucesso, os milhões de admiradores no mundo inteiro, o criador sempre se negou a ressuscitar a sua principal criação. Mesmo que, como diz Camilo Egaña, no site da CNN em espanhol, precisemos mais destes bonecos do que de pessoas, Quino resistiu à tentação. “Que 55 anos depois de criada, o que a Mafalda dizia continue actual, não é mérito de Quino: é uma vergonha para cada um de nós. Que somos como somos.” E acrescenta essa conhecida citação da menina de seis anos capaz de nos desarmar com a inocência precisa: “Não é que não haja bondade no mundo, acontece que anda por aí incógnita!” Quino sempre foi um pessimista esperançoso, aquele que não acredita que as coisas mudem, mas tenta mudá-las de qualquer maneira. Deixou de desenhar em 2006, quando o glaucoma lhe estragou a visão sem remédio. E o mais incrível disto tudo é que a última tira da Mafalda foi publicada em 1973. Faz-nos lembrar um célebre tango de Enrique Santos Discépolo que Julio Sosa e Carlos Gardel cantaram, chamado Cambalache, que começa assim: Que el mundo fue y será una porquería/ Ya lo sé… / En el quinientos diez / Y en el dos mil también.)