Biden, um velho amigo da China
Pelo contexto aqui apresentado, poder-se-á pensar que com Biden, um “velho amigo da China”, as relações sino-americanas voltarão à era dourada das administrações Bush-Obama. Mas não será necessariamente assim.
Aproxima-se o dia em que os eleitores americanos irão escolher quem assumirá a presidência do país para os próximos cinco anos. O escrutínio deambula entre o democrata Joe Biden, um velho quadro da política americana, e o republicano Donald Trump, um recém-chegado vindo do mundo empresarial, errático nas decisões, fraturante no estilo. Entre os espetadores mais atentos ao evoluir dos acontecimentos está o líder chinês, Xi Jinping, e os companheiros do topo da hierarquia do Partido Comunista Chinês.
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Aproxima-se o dia em que os eleitores americanos irão escolher quem assumirá a presidência do país para os próximos cinco anos. O escrutínio deambula entre o democrata Joe Biden, um velho quadro da política americana, e o republicano Donald Trump, um recém-chegado vindo do mundo empresarial, errático nas decisões, fraturante no estilo. Entre os espetadores mais atentos ao evoluir dos acontecimentos está o líder chinês, Xi Jinping, e os companheiros do topo da hierarquia do Partido Comunista Chinês.
Os últimos quatro anos foram particularmente desafiantes para o governo chinês, tendo as relações com os americanos atingido mínimos históricos. A administração Trump aplicou tarifas a dois terços das importações, travou investimentos do gigante asiático e vedou o país à entrada de tecnologia chinesa. O secretário de Estado Mike Pompeu atreveu-se a considerar que os quase cinquenta anos de compromisso com a China foram um erro para o país, uma declaração não conducente com os grandes momentos de compromisso alcançado entre os dois Estados. A afirmação, contudo, deve ser enquadrada no contexto de campanha eleitoral, visando a captura de segmentos específicos do eleitorado americano.
Entre Biden e Trump, não restam dúvidas que a elite política chinesa tem preferência pelo candidato democrata, ainda que alguns analistas chineses considerem que o estilo encrespado de Trump, com claros prejuízos para a imagem dos Estados Unidos no mundo, se reverteu a favor da China. Joe Biden, herdeiro da administração Obama, promete trazer um relacionamento mais cordial com o gigante asiático, reduzindo as tensões comerciais e políticas, abrindo novas oportunidade de cooperação. No caso de chegar à Casa Branca, antevê-se o fim do isolacionismo americano, uma propensão maior para a cooperação multilateral, um novo quadro no relacionamento com Pequim.
Joe Biden é um velho conhecido de Xi Jinping, com quem privou em várias ocasiões, um facto aproveitado pelo democrata no início da sua campanha. Afirmava, com orgulho, que passara mais tempo com o líder chinês do que com qualquer outro governante mundial. De facto, em 2011, na era Obama, Joe Biden e Xi Jinping viajaram juntos para a província de Sichuan, onde aproveitaram para, descontraidamente, trocar impressões sobre questões de política nacional e internacional. No mesmo ano, o líder chinês foi recebido na casa de Biden, em Washington, onde retomaram as conversas, envolvendo temáticas diversas de política, economia e segurança.
Mas as ligações de Joe Biden ao mundo chinês são muito anteriores, iniciando-se imediatamente com a sua entrada para senador na era Nixon. Importa lembrar que foi nesta administração que Washington e Pequim abriram os diálogos diretos, e o Presidente americano fez a sua viagem histórica à China, naquela que ficou conhecida como “a semana que mudou o mundo”. As relações formais entre estes dois países seriam (res)estabelecidas em 1979, e Joe Biden integrou nesse ano uma comitiva americana que seria na altura recebida pelo líder Deng Xiaoping. Em 1989, foi um dos senadores que votou pela aplicação de sanções contra a China na sequência da repressão em Tiananmen, mas na década posterior tornou-se um dos grandes defensores da entrada de investimento americano no gigante asiático. Na altura, o senado sofria uma forte pressão lobista de muitas empresas multinacionais americanas para que fossem facilitados os negócios com a China. Na sequência, em 2000, Joe Biden foi um dos 82 senadores que votou a favor da normalização das relações comerciais com o gigante asiático no pós-Tiananmen, abrindo caminho para a entrada da China na Organização Mundial de Comércio (OMC), efetivada no no ano seguinte.
Embora o foco fosse económico, nesta altura havia a ideia de que uma China cada vez mais integrada na economia mundial, seguindo a normas internacionais, pudesse em breve transitar para uma democracia liberal. A cooperação económica tornou-se central – quase exclusiva – no relacionamento bilateral, e matérias como os direitos humanos passaram para um segundo plano. Se, no passado, líderes chineses, tal como Jiang Zemin, se obrigavam a habilmente contornar as invetivas cirúrgicas sobre direitos humanos, nas lideranças posteriores foram os governantes estrangeiros que passaram a omitir o tema. O primado do lucro a tudo se sobrepunha.
Pelo contexto apresentado, poder-se-á pensar que com Biden, um “velho amigo da China”, as relações sino-americanas voltarão à era dourada das administrações Bush-Obama. Mas não será necessariamente assim. Aproveitando um adágio ancestral do filósofo moralista Confúcio, “[e]entre amigos frequentes, censuras afastam a amizade”, o que pode ser a ilustração dos tempos vindouros. O contexto pandémico da covid-19 tem deixado na opinião pública americana uma imagem negativa da China, que obrigou o próprio Joe Biden a alterar a sua retórica em relação a este país asiático. Kurt Campbell e Jake Sullivan, os conselheiros políticos do candidato democrata para os assuntos asiáticos e de segurança nacional, respetivamente, têm declarado a urgência em se alterarem as regras da OMC no que se refere à aplicação de subsídios em empresas estatais.
O próprio legado político da era Obama não é para Biden um fator totalmente positivo. A ligeireza daquele Presidente no tratamento de alguns dossiers com a China é hoje criticável. Aliás, segundo o académico Kerry Brown, alguns quadros da elite política chinesa consideravam Obama um líder “fraco”, permissivo face aos avanços estratégicos de uma China calculista. Centrou as suas preocupações no domínio ambiental quando, por exemplo, Pequim tinha em andamento a sua estratégia de expansão periférica denominada por “linha dos nove traços”, que incluía a ocupação de ilhas no Mar do Sul da China. Um fator desafiante para a estabilidade na região da Ásia-Pacífico, onde os Estados Unidos têm interesses estratégicos. Aquela área geográfica vive hoje momentos de elevada tensão.
Ainda que o mundo noticioso centre as atenções na relação Washington-Pequim, são nações como a Austrália, o Japão, a Coreia do Sul e a Índia aquelas que mais se preocupam com a ascensão chinesa. Hoje, tanto o Partido Democrata como o Republicano, patrocinados pela opinião pública, estão alinhados na “questão chinesa”, olham-na como um “rival autoritário”, que usa práticas comerciais predatórias. De acordo com uma recente sondagem do Pew Research Center, 73% dos americanos têm uma opinião negativa sobre a China, um indicador que não pode ser desprezado.
No caso de ganhar as eleições, Biden trará certamente um novo élan diplomático para as relações com Pequim, explorando a amizade e a experiência de longos anos de contacto com a China. No entanto, os fatores individuais não serão suficientes para desviar, substancialmente, a política externa americana da linha dura com a China. Estão em jogo elevados interesses estratégicos e o suposto eleito presidente terá como principal obrigação a sua proteção.
Nota: O texto vincula apenas a opinião do autor
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico