Três inspectores do SEF acusados de homicídio qualificado de Ihor Homenyuk
Ministério Público mandou extrair certidão para averiguar a prática de outros crimes. Dois inspectores acusados ainda de posse de arma proibida. Certidão abre, assim, o leque a outras investigações.
Homicídio qualificado, na forma consumada, em co-autoria. É este o crime por que estão acusados três inspectores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) suspeitos de terem matado um cidadão ucraniano nas instalações do aeroporto de Lisboa.
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Homicídio qualificado, na forma consumada, em co-autoria. É este o crime por que estão acusados três inspectores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) suspeitos de terem matado um cidadão ucraniano nas instalações do aeroporto de Lisboa.
De acordo com o despacho de acusação do Ministério Público, Luís Silva, Bruno Sousa e Duarte Laja, em prisão domiciliária desde 30 de Março, irão responder por este crime. Luís Silva e Duarte Laja (e não os três inspectores como inicialmente escrevemos) responderão ainda pelo crime de posse de arma proibida.
Ihor Homenyuk morreu a 12 de Março no Centro de Instalação Temporária do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) do Aeroporto de Lisboa, onde esteve manietado, numa sala, durante 15 horas.
O MP não acusou mais ninguém. A investigação da Polícia Judiciária apontava já nesta direcção, ilibando os seguranças ou qualquer outro interveniente. Mas em despacho o MP mandou extrair certidão com inquérito para averiguar a prática de outros crimes, nomeadamente falsificação de documento e a responsabilidade de mais intervenientes. Esta certidão abre, assim, o leque a outras investigações.
Não por acaso, no final, o despacho conclui que, além dos arguidos, “outros inspectores do SEF tudo fizeram para omitir” os factos ao MP, “chegando ao ponto de informar o magistrado do MP que o ofendido foi acometido de doença súbita”.
Na reconstituição, o procurador do MP, Óscar Ferreira, detalha passo a passo os momentos que levaram à morte de Ihor Homenyuk e o que falhou no SEF. Critica seguranças e outros inspectores, além dos arguidos. Por exemplo, sublinha que, apesar de ter sido conduzido ao Hospital de Santa Maria, e de o SEF ter comunicado tardiamente à Embaixada da Ucrânia que Ihor Homenyuk ia embarcar, nenhum responsável fez qualquer contacto com a embaixada para que fosse prestada assistência médica e apoio jurídico.
Também refere que um enfermeiro (que assistiu o cidadão por volta das 1h30 de dia 12 de Março) sugeriu aos inspectores do SEF que o transportassem de novo ao hospital, depois de administrar um calmante, recomendação que não foi seguida. E, perante sinais de agitação de Ihor Homenyuk, sem que tivessem “autorização e competência para tal”, dois vigilantes “algemaram-no com fita adesiva à volta dos tornozelos e dos braços” e chamaram de novo os inspectores ao local. Há mais críticas aos inspectores do SEF que, durante a madrugada, pelas 4h41, viram o cidadão ucraniano imobilizado: substituíram as algemas de fita-cola por lençóis “agravando dessa forma o seu suposto estado de ansiedade, o que constitui procedimento anómalo, dado que os passageiros com ordem de retorno não podem nem devem ser privados da liberdade como era o caso”.
Procedimentos do SEF questionados
O despacho de acusação do MP coloca interrogações a vários procedimentos do SEF desde o momento em que Ihor foi impedido de entrar em Portugal. Sublinha que os ucranianos estão isentos de visto de turista, mas mesmo assim Ihor Homenyuk foi barrado, e refere que Portugal tem acolhido cidadãos ucranianos. Questiona a entrevista que lhe foi feita e que determinou a decisão do SEF, já que foi efectuada por um inspector que não domina a língua ucraniana e por uma inspectora, que “dominará a língua ucraniana mas que, sendo funcionária, não estava habilitada por razões de imparcialidade a efectuar qualquer tradução, existindo dúvidas sérias sobre se o referido cidadão declarou que pretendia trabalhar em Portugal”.
Reproduz o que a investigação da PJ há tinha apurado; os arguidos chegaram à sala onde estava Ihor pelas 8h15 e um deles disse para a segurança “atenção, você não vá colocar aí os nossos nomes, ok?”. Luís Silva trazia um bastão extensível e Bruno Sousa um par de algemas. Depois de o algemarem com as mãos atrás das costas e de lhe amarrarem os cotovelos com ligaduras, desferiram-lhe socos e pontapés. Já com Ihor prostrado no chão, continuaram a dar-lhe pontapés e pancadas no tronco, “enquanto aos gritos, lhe exigiam que permanecesse quieto”. Vinte minutos depois, abandonaram o local e disseram: “Agora ele está sossegado.” Um deles afirmou: “Isto hoje, já nem preciso de ir ao ginásio.”
O MP concluiu que os inspectores deixaram o ofendido num “estado de grande prostração e algemado”, sabendo que, como membros de um órgão de polícia criminal, “tinham o poder de impedir que os vigilantes actuassem e, face ao temor reverencial, denunciassem a terceiros o que se tinha passado na sala”.
O MP não tem dúvidas, com base no relatório de autópsia, de que “as fracturas dos arcos costais associadas às demais lesões contundentes foram provocadas pela aplicação de um peso tal nas costas” de Ihor “obrigando o tórax a esmagar-se contra o solo”. E acrescenta: “Os pontapés e pancadas provocaram a fractura dos arcos costais, potenciados pela imobilização do ofendido, com os braços manietados nas costas, em posição de decúbito ventral, causaram a violenta constrição do tórax, promovendo a asfixia mecânica que foi causa directa e necessária da morte.”
Os inspectores, sublinha o MP, sabiam, pela formação profissional que lhes é ministrada, que manietar alguém “com os braços atrás das costas e deitado em posição de decúbito ventral” pode provocar “dificuldades respiratórias” e “que, por essa razão, poderiam causar-lhe a morte”. Agiram em “comunhão de esforços e intentos”, sujeitando-o “a um tratamento desumano e violando gravemente os deveres inerentes às suas funções”, conclui o MP.
IGAI instaura oito processos
Entretanto, na terça-feira, a Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI) anunciou que vai instaurar oito processos disciplinares a elementos do SEF na sequência do inquérito que apurou a morte de Ihor Homenyuk.
O ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, já tinha determinado, em 30 de Março, a instauração de processos disciplinares ao director e subdirector do SEF de Lisboa (que se demitiram), ao coordenador, bem como aos três inspectores agora acusados.
Durante o período em que esteve detido, o cidadão ucraniano foi visto por seguranças, por aquele enfermeiro, e a primeira certidão de óbito, passada no local depois de chamado o INEM, falava de morte por “causa natural”. O cadáver foi depois enviado para o Instituto de Medicina Legal, que identificou sinais de homicídio: as várias fracturas dos arcos costais, associadas à posição em que ele ficou algemado, estiveram na base de uma asfixia mecânica que foi fatal.
O médico legista não teve dúvidas de que se tinha tratado de um homicídio e alertou a PJ, que recebeu ainda uma denúncia anónima. Nela, alguém dizia: “O homem ficou todo amassado na cara e com escoriações nos braços”, “teve convulsões e urinou-se”.
O gabinete de Eduardo Cabrita, contactado pelo PÚBLICO, não quis comentar. Na altura, não teve pudor em classificar aquilo que aconteceu, administrativamente no SEF, como “negligência grosseira e encobrimento grave”, que “terá consequências”. Também o SEF não quis fazer comentários.