Mafalda.
Cresci a ler-te, a adorar-te, a carregar-te nas costas, no estojo, na pele, no bolo de aniversário, no pijama e hoje que o teu pai partiu existe um oceano de frases que não param de me entorpecer as sinapses nervosas: afinal “será por acaso que esta vida moderna terá mais de moderna do que de vida?”.
Dizem que agora que o teu pai Joaquín Salvador Lavado, mais conhecido por Quino, faleceu. Jamais saberemos o teu apelido, como se tu necessitasses de algum apelido para teres identidade própria ou seres única.
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Dizem que agora que o teu pai Joaquín Salvador Lavado, mais conhecido por Quino, faleceu. Jamais saberemos o teu apelido, como se tu necessitasses de algum apelido para teres identidade própria ou seres única.
Quino eternizou o teu nome, o meu nome, o nosso nome, no mundo inteiro em 30 países e em 15 idiomas, o mesmo nome que inúmeras pessoas carregam no bilhete de identidade. Um nome ao qual ninguém fica indiferente sobretudo em países que falam castelhano, atribuindo a Quino semelhante coincidência, o que só revela o impacto mundial do teu legado.
Tu que no alto dos teus seis anos de idade desejas "parar o mundo porque queres descer” tornaste-te a mais improvável comentadora política de todos os tempos, escondida por entre as bolinhas infantis do teu icónico vestido e pela inocência do teu rosto.
Estará Platão, por esta altura no reino dos sábios, a felicitar Quino por ter conseguido criar a melhor interpretação de todos os tempos da sua “Alegoria da Caverna”, desde o exterior da mesma, através de ti, uma criança de apenas seis anos. Soubeste estar sempre fora da caverna, ensinando-nos a questionar o mundo perceptível de uma forma inesquecível, mordaz, sábia, humorística e sedutoramente irónica.
Chegaste mesmo a apelidar uma pequena tartaruga de “burocracia”, por saberes como elas são tão vagarosas e como o nosso mundo tenta demover a nossa vontade, vomitando-nos mil e uma estratégias burocráticas para nos vencer pelo cansaço. Defendeste a paz mundial como ninguém, trazendo-nos reflexões irreverentes sobre a igualdade, a educação, a política, os direitos humanos, a sociedade através da microssociedade composta pelo teu Papá, Mamã, Felipe, Manolito, Susanita, Guille, Miguelito e Liberdade.
Umberto Eco comparou-te em 1968 a Charlie Brown, mas todos sabemos que o teu ódio à sopa e a tua visão humanista e aguçada do mundo é incomparável com qualquer personagem.
Cresci a ler-te, a adorar-te, a carregar-te nas costas, no estojo, na pele, no bolo de aniversário, no pijama e hoje que o teu pai partiu existe um oceano de frases que não param de me entorpecer as sinapses nervosas: afinal “será por acaso que esta vida moderna terá mais de moderna do que de vida?”. Sempre que preparar o jantar, prometo tentar vencer as cebolas porque afinal existem motivos bem mais altruístas para chorar tal como disseste à tua mãe Raquel.
As tuas preocupações são o retrato mais fiel da década de 1960, no entanto pouco se aprendeu no mundo e hoje, tal como ontem, continuas a ter razão, tendo já inspirado com os teus pensamentos cerca de cinco ou seis gerações.
Quino deu-nos de bandeja através de ti, justiceira, eterna sonhadora e fã dos Beatles, uma porta de entrada para não nos conformarmos com as injustiças do mundo em que vivemos e sobretudo a oportunidade para não passarmos pelos trilhos da vida segurando a bandeira da ignorância perante tudo o que nos rodeia. Afinal, “não seria maravilhoso o mundo, se as bibliotecas fossem mais importantes do que os bancos?”.
Termino agradecendo ao teu pai: Obrigada, Quino, por todos os sorrisos, pelas dúvidas, pelas reflexões, pelos soundbites, pelos fundos de ecrã, mas sobretudo pelas páginas dedilhadas com prazer ao som das ondas dos verões mais puros de uma adolescência que não seria sido a mesma sem a companhia da Mafalda.