Dezenas de mulheres acusam funcionários da OMS de exploração sexual na República Democrata do Congo
Abusos aconteceram durante os esforços para combater crise de ébola e uma das vítimas era uma sobrevivente que procurava apoio psicológico. OMS diz que vai investigar denúncias de forma “robusta”.
O surto de ébola que se arrastou durante quase dois anos no Leste da República Democrática do Congo, o segundo maior de que há registo, foi dado como terminado no fim de Junho pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Em entrevistas, 51 mulheres descrevem múltiplos incidentes de abusos, a maioria cometidos por homens que diziam ser funcionários estrangeiros mobilizados para combater a crise sanitária.
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O surto de ébola que se arrastou durante quase dois anos no Leste da República Democrática do Congo, o segundo maior de que há registo, foi dado como terminado no fim de Junho pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Em entrevistas, 51 mulheres descrevem múltiplos incidentes de abusos, a maioria cometidos por homens que diziam ser funcionários estrangeiros mobilizados para combater a crise sanitária.
Muitos dos relatos das vítimas são confirmados por motoristas de organizações humanitárias e funcionários locais de organizações não-governamentais. As denúncias, divulgadas pela Reuters, resultam de uma investigação de quase um ano realizada em conjunto pela Thomson Reuters Foundation e pela agência de notícias New Humanitarian.
Quase todas as entrevistadas contam que vários homens lhes propuseram sexo ou as obrigaram a ter relações sexuais em troca de contratos de trabalho; nos casos em que já estavam a trabalhar, os contratos terminaram quando recusaram as propostas. As alegações que a investigação engloba aconteceram entre 2018 e Março deste ano na cidade de Beni, na província do Kivu Norte – o número e a semelhança entre os relatos sugerem que a prática era generalizada.
O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, pediu que as denúncias sejam “completamente investigadas” e a OMS promete “uma investigação robusta” e adianta que já foi iniciada “uma revisão minuciosa das alegações específicas”.
“Trair as pessoas nas comunidades que servimos é repreensível. Não toleramos este comportamento por parte dos nossos funcionários, empresas que contratamos ou parceiros”, diz a organização num comunicado. “Qualquer pessoa que seja identificada como estando envolvida será responsabilizada e enfrentará consequências sérias, incluindo a demissão imediata”, assegura.
Algumas mulheres dizem ter sido emboscadas em escritórios, outras foram enganadas com bebidas. Algumas foram abordadas à porta de supermercados, em centros de emprego ou nos hospitais onde eram afixadas as listas de quem tinha conseguido trabalho. Há relatos de mulheres que se viram trancadas em quartos por homens que lhes ofereciam trabalho ou ameaçam despedi-las. Muitos homens recusaram usar preservativos e duas das 51 entrevistadas ficaram grávidas.
“Tantas mulheres foram afectadas por isso”, diz uma mulher de 44 anos, que conta que teve de ter sexo com um homem que lhe disse trabalhar para a OMS para conseguir um emprego. “Não consigo pensar em ninguém que tenha trabalhado na resposta [ao ébola] que não tenha tido que dar algo em troca”, afirma.
A maioria das alegações são contra homens, incluindo médicos, que se apresentaram como pertencendo à OMS – pelo menos 30 mulheres. Oito mulheres acusam homens que diziam trabalhar para o Ministério da Saúde da RP do Congo. Duas outras agências da ONU e quatro ONG internacionais são referidas nas denúncias. Entre os acusados há homens da Bélgica, da França, do Canadá, do Burkina Faso, da Guiné-Conakri e da Costa do Marfim.
Algumas das vítimas eram cozinheiras, empregadas de limpeza ou tinham assinado contratos de curto prazo como assistentes sociais comunitárias e ganhavam 50 a 100 dólares (cerca de 85 euros) por mês (mais do dobro do salário habitual). A maioria diz que não fez queixa nem contou o que acontecera até ser contactada pelos jornalistas com medo de represálias ou de perder o emprego – a maioria disse sentir-se envergonhada.
Acordar nua num quarto de hotel
Uma empregada de limpeza de 25 anos conta ter sido convidada por um médico da OMS para discutir uma promoção em sua casa. “Ele fechou a porta e disse-me: ‘Há uma condição, temos de ter sexo agora’”, descreve. “Ele começou a despir-me. Eu recuei mas ele forçou-se contra mim e continuou a arrancar-me as roupas… Comecei a chorar e disse-lhes para parar… Ele não parou. Eu abri a porta e fugi.”
Uma sobrevivente de ébola com 32 anos contou ter sido convidada a ir ter a um hotel para receber aconselhamento psicológico. No lobby, o homem que a esperava ofereceu-lhe um refrigerante – ela diz ter acordado horas depois, nua e sozinha num quarto do hotel; acredita que foi violada.
No comunicado agora divulgado, a OMS assegura ter “uma política de tolerância zero em relação a abusos e exploração sexual”. Essa é uma promessa que tanto a ONU como as principais agências humanitárias internacionais fizeram no passado, depois de se conhecerem situações de abusos generalizados no Haiti, na República Centro-Africana, na Libéria ou no Sudão do Sul.