“Não se nasce digital”. Especialistas europeus pedem mais investimento na educação digital
Investigadores em educação e mercado de trabalho de cinco países, incluindo Portugal, alertam para a importância de ensinar as crianças a navegar num ambiente digital que vai além de saber mexer em ecrãs.
Em 2020, a literacia digital vai além de se saber “mexer” num computador ou telemóvel e inclui a capacidade de lidar, desde cedo, com os vários desafios sociais da transformação digital. Por exemplo, pesquisar informação de confiança, fintar informação falsa ou construir uma identidade online segura — são áreas que as crianças e os jovens não dominam de forma intuitiva, apesar de serem apelidados de “nativos digitais”.
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Em 2020, a literacia digital vai além de se saber “mexer” num computador ou telemóvel e inclui a capacidade de lidar, desde cedo, com os vários desafios sociais da transformação digital. Por exemplo, pesquisar informação de confiança, fintar informação falsa ou construir uma identidade online segura — são áreas que as crianças e os jovens não dominam de forma intuitiva, apesar de serem apelidados de “nativos digitais”.
Este é um dos vários alertas do relatório deste ano da ySkills, um projecto europeu que analisa riscos e oportunidades relacionados com os usos de tecnologias de informação (as chamadas “TIC”) entre jovens dos 12 aos 17 anos. Baseia-se em entrevistas feitas a 34 especialistas na área a viver na Alemanha, Estónia, Finlândia, Itália, Polónia e Portugal durante o mês de Maio.
Independentemente do país, a maioria dos inquiridos considera que a crise da covid-19 evidenciou défices nas capacidades digitais dos cidadãos e mostrou a importância de os governos investirem numa educação tecnológica desde cedo.
“Não se nasce digital. A expressão ‘nativos digitais’ tornou-se banal, só que as crianças não nascem ensinadas sobre a Internet e o digital”, começa por explicar ao PÚBLICO Cristina Ponte, coordenadora do projecto ySkills em Portugal e docente da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (Nova FCSH), uma das instituições envolvidas no projecto.
“A nível europeu, as preocupações evidenciadas são as mesmas. Há um encantamento da sociedade ao ver crianças ou jovens a mexerem em ecrãs e confunde-se manusear um equipamento com saber comunicar, aprender e pesquisar num ambiente digital”, justifica a docente. “As competências necessárias para se lidar com os meios digitais vão além das competências tecnológicas. São também sociais, cognitivas, emocionais e culturais”, continua. “E os adultos e as crianças precisam de ser ensinados.”
Dá o exemplo de famílias que partilham computadores ou tablets. “É muito fácil uma criança ter acesso a conteúdo que não é apropriado à sua idade se estiver a utilizar um portátil de um adulto para aceder ao YouTube”, sugere Ponte.
A Google (dona do YouTube) está a tentar desenvolver algoritmos para impedir menores de verem vídeos impróprios para a sua idade, mas estes deixam de ter relevância se as crianças usarem o site com a conta de um adulto.
Assim, os especialistas entrevistados para o relatório do ySkills consideram que “colaborar” e “interagir” através das novas tecnologias, “gerir uma identidade digital”, “proteger informação privada e pessoal” e “participar em acções de cidadania online” estão entre as competências digitais mais importantes para ensinar às crianças. No topo da lista está a capacidade de “avaliar dados, informação e conteúdo” na Internet.
“A pandemia levou a uma intensificação dos usos digitais, como o teletrabalho, incluindo o dos professores e alunos”, nota Cristina Ponte. “Deixa de ser tão importante dar relevância o tempo que as crianças passam em frente do ecrã e passa-se a valorizar mais o contexto. O tempo que se passa em frente de um ecrã também pode ser enriquecedor.”
É fundamental, por exemplo, ensinar os mais novos a perceber que uma pesquisa na Internet dá acesso a diferentes tipos de informação: propaganda, notícias, paródias, ficção, burlas e anúncios.
Pandemia mostra desigualdades “debaixo do tapete”
Nem todos, porém, têm a mesma oportunidade de aprender. Além das desigualdades entre diferentes países, vários dos especialistas entrevistados para o ySkills argumentam que desigualdades sociais a nível nacional podem impedir crianças de famílias desfavorecidas de ter acesso às ferramentas digitais de que necessitam, impedindo-as de terem as mesmas oportunidades sociais e laborais que outras crianças.
Esta desigualdade não se refere apenas ao acesso a equipamentos tecnológicos, mas ao acesso a formação e instrutores competentes. Embora o foco das entrevistas para o projecto ySkills sejam os jovens, muitos especialistas destacam a escassez de programas para desenvolver competências digitais nos mais velhos.
“A pandemia revelou desigualdades que estavam ‘debaixo do tapete’”, reconhece Ponte. “Em Portugal, a pandemia acentuou particularmente a desigualdade entre gerações. A classe docente portuguesa é uma classe envelhecida que teve fortes dificuldades em adaptar-se ao ensino à distância e ao material que os alunos tinham.”
Em escolas mais desfavorecidas, a matéria e os projectos chegaram a ser partilhados em grupos de WhatsApp para evitar que os alunos perdessem a conexão com a escola. Mas, para tal, era preciso que os docentes também dominassem as ferramentas.
“E não é o mesmo usar um smartphone ou um computador para um trabalho de várias páginas, manusear uma folha de cálculo”, continua a docente.
Os especialistas entrevistados para o relatório do ySkills frisam, no entanto, que a responsabilidade não é apenas das escolas e dos professores, e que construir um futuro digital depende da colaboração de todos: legisladores e reguladores, agentes do sector público e privado, famílias e comunicação social. É preciso empresas com workshops sobre o mundo digital, notícias que falem dos benefícios da tecnologia, e pais atentos à forma como os mais novos usam os ecrãs, sugerem os autores do relatório, que esperam que o relatório desencadeie novos projectos.
“Como realçado por muitos dos especialistas durante a nossa investigação, as capacidades digitais atingiram um estatuto indispensável na vida das pessoas, especialmente considerando que uma parte significativa das actividade e serviços está a ser feita online”, lê-se nas conclusões do relatório. “Dominar competências digitais é essencial para diminuir os riscos associados ao seu uso.”