Quino, um dos meus

Essa coisa que era a Mafalda vingou pela agudeza das observações, pela fineza do traço e da comunicação, pelo divertimento do humor, sem dúvida, mas também pela identificação imediata com aquelas personagens, que passaram a existir naqueles espaços vazios que os jovens têm para ser ocupados pelos heróis e pelos amigos.

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Quino com uma escultura de Mafalda em 2014 Reuters/Eloy Alonso

Quando eu era pequeno, aí pela Idade do Bronze, e, na minha especialidade, achava que ainda não era ninguém, tive a fortuna de ser visitado, por livros e por brinquedos, por artistas que tiveram artes de me conquistar para sempre na gratidão de me darem o que eu não conhecia, mas sabia que me faltava. Devo ao inventor do Lego um brinquedo com que fazer eu mesmo todos os brinquedos: carros, pistolas, casas, camiões, navios, aviões, labirintos para moscas a que era preciso tirar as asas para que não fizessem batota, até cofres com segredo e “leitores” de cartões perfurados dos primeiros computadores de empresas.

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Quando eu era pequeno, aí pela Idade do Bronze, e, na minha especialidade, achava que ainda não era ninguém, tive a fortuna de ser visitado, por livros e por brinquedos, por artistas que tiveram artes de me conquistar para sempre na gratidão de me darem o que eu não conhecia, mas sabia que me faltava. Devo ao inventor do Lego um brinquedo com que fazer eu mesmo todos os brinquedos: carros, pistolas, casas, camiões, navios, aviões, labirintos para moscas a que era preciso tirar as asas para que não fizessem batota, até cofres com segredo e “leitores” de cartões perfurados dos primeiros computadores de empresas.

Devo a uma dieta de Lego e de bicicleta a exploração do próximo e do distante e à Enid Blyton, ao Júlio Verne, ao Verbo Juvenil, as sensações de aventuras que a aldeia em que vivia não me dava. Nas passagens pela cidade e quando acabei por me fixar nela, conheci o Hergé e muitos outros, na revista Tintin, que era preciso comprar aos bocados, todas as semanas, para não se perder o fio à meada. E perdeu-se. Até se fazer a revelação mágica do “álbum”: uma aventura completa ali. E os álbuns do Edgar Pierre Jacobs, mestre dos mestres.

E então apareceu o Quino, no liceu, emprestado no intervalo das aulas, em livrinhos pequeninos, fininhos, com tiras independentes de história inteira, da Mafalda. Aquilo era outra coisa. Tal como o Tintin tinha sido outra coisa. Tal como os Blake e Mortimer tinham sido outra coisa.

Essa coisa que era a Mafalda vingou pela agudeza das observações, pela fineza do traço e da comunicação, pelo divertimento do humor, sem dúvida, mas também pela identificação imediata com aquelas personagens, que passaram a existir naqueles espaços vazios que os jovens têm para ser ocupados pelos heróis e pelos amigos. Ao grupo de colegas do liceu pude acrescentar – e tantos outros o fizeram – os que não tinha, mas gostaria de ter. E aprendia-se muito. Por exemplo, que a liberdade era pequenina. Por acaso, era, embora eu não soubesse. Mas deu-se logo o 25 de Abril, por esses dias, e eu percebi. Mas o Quino já me tinha avisado.

E avisou-me de outras coisas no álbum Não Me Grite!, que eu comprei por 200 escudos: a vida nas cidades, o materialismo, a exploração, a ecologia, a solidão. E em Gente, Bem, Obrigado, e Você?, Quinoterapia e outros, pude confirmar, vezes sem conta, que ele continuava em forma, que continuava lúcido, a ser meu amigo, a partilhar os seus pontos de vista comigo e eu a partilhar dos dele.

Em 1984, na agora defunta Livraria Bertrand de 31 de Janeiro, no Porto, onde tanta coisa se passou até fechar, fui dos que entraram na bicha para uma dedicatória e um aperto de mão ao amigo que vivia tão longe e que eu não conhecia, mas que me tinha acompanhado, tal como aos outros meus amigos, nos anos em que nos construímos. Levei-lhe o Não Me Grite!. E aqui está: “Para Aurélio, Quino 84”. Quanto vale? Não é quanto vale no eBay, é no coração… Obrigado, Quino. És um dos meus.