Ninguém nos ensina a saber perder

Numa sociedade patologicamente obcecada por ganhar, ninguém nos ensina a aceitar a derrota. Nem mesmo quando vem de um fenómeno da natureza.

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Reuters/TOBY MELVILLE

Já me irritei, já me chateei, já me apeteceu expulsar deste planeta muita gente nestes últimos dias por me parecer gritantemente óbvio que negar a ciência e descredibilizar as instituições é um gigante salto para o precipício do caos e da anarquia. Mas depois percebi que estava também a ser vítima do próprio veneno que eu tanto critico: a raiva, a crispação, a polarização, os ataques e a violência.

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Já me irritei, já me chateei, já me apeteceu expulsar deste planeta muita gente nestes últimos dias por me parecer gritantemente óbvio que negar a ciência e descredibilizar as instituições é um gigante salto para o precipício do caos e da anarquia. Mas depois percebi que estava também a ser vítima do próprio veneno que eu tanto critico: a raiva, a crispação, a polarização, os ataques e a violência.

“Olha para dentro! Tenta perceber por que estás a sentir isso.” Porquê esta animosidade para com outras pessoas? Sim, acusaram-me de ser uma marioneta do sistema político, de ter opiniões controladas pelo poder vigente, de estar a receber muito dinheiro para opinar, agente de forças obscuras, de ser co-responsável pela morte de muita gente, de falar do alto do meu conforto por receber o meu ordenado (esta parte é verdade) e um médico pela mentira... Apenas porque eu critiquei/critico os relativismos, negacionismos e todas as conspirações.

É difícil não sentir raiva perante tamanhas injustiças, depois de tantos anos dedicados à medicina aquém e além-fronteiras, por vezes de graça, e sempre um defensor acérrimo da medicina pública e igual para todos, e mais ainda por, desde o primeiro dia, me ter insurgido contra as injustiças sociais desta crise, manifestando por várias vezes a necessidade de se contrabalançarem mortos com desemprego e fome, e até abertamente ter o desplante de dizer em voz alta que a felicidade também é um medidor de saúde, e que estar vivo não é tudo.

E não mudei uma vírgula sobre estas premissas (sobre outras, mudei, por ignorância na altura). O que, para mim, se foi tornando uma evidência crescente é que a perda de controlo da pandemia irá levar a um agravamento agreste de todos os parâmetros tidos como danos colaterais: crise económica, mortos sem covid, e mesmo a própria felicidade colectiva com toda a subjectividade que possa ter. Mas a minha raiva não vem daí.

A minha raiva e heteroagressividade consciente e subconsciente vem do mesmo sítio dos que me criticam a mim, à comunidade científica, às instituições nacionais e internacionais cuja idoneidade, relevância e independência nunca ninguém pôs em causa, e agora toda a gente demoniza, no momento em que mais deveria apoiar. Esta raiva de todos nós vem porque estamos a perder. E numa sociedade patologicamente obcecada por ganhar, ninguém nos ensina a aceitar a derrota. Nem mesmo quando vem de um fenómeno da natureza. Como estamos a perder, temos de culpar alguém, porque o vírus é demasiado pequeno e invisível para ser culpado disto tudo.

Perdemos afectos, perdemos carinhos, abraços, risos, música, festa, alegria... E felicidade. Perdemos empregos, sonhos, a casa, o sustento para os nossos filhos, a nossa segurança... A nossa felicidade. Perdemos vidas de uma forma solitária e cruel, perdemos amigos, avós, pais e filhos... Perdemos um pedaço de nós... A nossa felicidade.

Ninguém nos ensina a saber perder e a minha raiva também vem daí. E acredito que se sente no ar uma crispação, uma tensão, uma paranóia colectiva que só pode ser culpa de alguém. Mas não é. A culpa é do vírus, e o vírus nem se qualifica como um ser vivo, pelo que fica difícil soltarmos a nossa raiva para cima dele.

As escolhas vão ser entre o mau e o péssimo. Entre perder por pouco ou perder “por goleada”. E acredito que estarmos unidos e trocar a raiva por amor ao próximo, mesmo os que têm opiniões contrárias à nossa, é que vai definir o quão pesada será a nossa derrota. Pelo amor.