Ninguém nos ensina a saber perder
Numa sociedade patologicamente obcecada por ganhar, ninguém nos ensina a aceitar a derrota. Nem mesmo quando vem de um fenómeno da natureza.
Já me irritei, já me chateei, já me apeteceu expulsar deste planeta muita gente nestes últimos dias por me parecer gritantemente óbvio que negar a ciência e descredibilizar as instituições é um gigante salto para o precipício do caos e da anarquia. Mas depois percebi que estava também a ser vítima do próprio veneno que eu tanto critico: a raiva, a crispação, a polarização, os ataques e a violência.
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Já me irritei, já me chateei, já me apeteceu expulsar deste planeta muita gente nestes últimos dias por me parecer gritantemente óbvio que negar a ciência e descredibilizar as instituições é um gigante salto para o precipício do caos e da anarquia. Mas depois percebi que estava também a ser vítima do próprio veneno que eu tanto critico: a raiva, a crispação, a polarização, os ataques e a violência.
“Olha para dentro! Tenta perceber por que estás a sentir isso.” Porquê esta animosidade para com outras pessoas? Sim, acusaram-me de ser uma marioneta do sistema político, de ter opiniões controladas pelo poder vigente, de estar a receber muito dinheiro para opinar, agente de forças obscuras, de ser co-responsável pela morte de muita gente, de falar do alto do meu conforto por receber o meu ordenado (esta parte é verdade) e um médico pela mentira... Apenas porque eu critiquei/critico os relativismos, negacionismos e todas as conspirações.
É difícil não sentir raiva perante tamanhas injustiças, depois de tantos anos dedicados à medicina aquém e além-fronteiras, por vezes de graça, e sempre um defensor acérrimo da medicina pública e igual para todos, e mais ainda por, desde o primeiro dia, me ter insurgido contra as injustiças sociais desta crise, manifestando por várias vezes a necessidade de se contrabalançarem mortos com desemprego e fome, e até abertamente ter o desplante de dizer em voz alta que a felicidade também é um medidor de saúde, e que estar vivo não é tudo.
E não mudei uma vírgula sobre estas premissas (sobre outras, mudei, por ignorância na altura). O que, para mim, se foi tornando uma evidência crescente é que a perda de controlo da pandemia irá levar a um agravamento agreste de todos os parâmetros tidos como danos colaterais: crise económica, mortos sem covid, e mesmo a própria felicidade colectiva com toda a subjectividade que possa ter. Mas a minha raiva não vem daí.
A minha raiva e heteroagressividade consciente e subconsciente vem do mesmo sítio dos que me criticam a mim, à comunidade científica, às instituições nacionais e internacionais cuja idoneidade, relevância e independência nunca ninguém pôs em causa, e agora toda a gente demoniza, no momento em que mais deveria apoiar. Esta raiva de todos nós vem porque estamos a perder. E numa sociedade patologicamente obcecada por ganhar, ninguém nos ensina a aceitar a derrota. Nem mesmo quando vem de um fenómeno da natureza. Como estamos a perder, temos de culpar alguém, porque o vírus é demasiado pequeno e invisível para ser culpado disto tudo.
Perdemos afectos, perdemos carinhos, abraços, risos, música, festa, alegria... E felicidade. Perdemos empregos, sonhos, a casa, o sustento para os nossos filhos, a nossa segurança... A nossa felicidade. Perdemos vidas de uma forma solitária e cruel, perdemos amigos, avós, pais e filhos... Perdemos um pedaço de nós... A nossa felicidade.
Ninguém nos ensina a saber perder e a minha raiva também vem daí. E acredito que se sente no ar uma crispação, uma tensão, uma paranóia colectiva que só pode ser culpa de alguém. Mas não é. A culpa é do vírus, e o vírus nem se qualifica como um ser vivo, pelo que fica difícil soltarmos a nossa raiva para cima dele.
As escolhas vão ser entre o mau e o péssimo. Entre perder por pouco ou perder “por goleada”. E acredito que estarmos unidos e trocar a raiva por amor ao próximo, mesmo os que têm opiniões contrárias à nossa, é que vai definir o quão pesada será a nossa derrota. Pelo amor.