Quatro grandes museus não sabem o que fazer com as imagens do KKK de Philip Guston
Grande retrospectiva que começava na National Gallery of Art de Washington e passava pela Tate Modern em Londres foi adiada quatro anos. Mundo da arte está dividido.
O adiamento por quatro anos de uma retrospectiva do artista norte-americano Philip Guston (1913-1980), prevista para inaugurar este ano em quatro grandes museus nos EUA e na Europa, está a causar polémica no mundo da arte. A decisão deve-se ao facto de os museus envolvidos na organização desta exposição dedicada a um dos nomes relevantes da arte moderna do século XX nos EUA terem considerado que a série de pinturas onde figuram membros encapuzados do Ku Klux Klan (KKK) “precisa de ser melhor contextualizada devido ao momento político”, escreve o jornal New York Times.
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O adiamento por quatro anos de uma retrospectiva do artista norte-americano Philip Guston (1913-1980), prevista para inaugurar este ano em quatro grandes museus nos EUA e na Europa, está a causar polémica no mundo da arte. A decisão deve-se ao facto de os museus envolvidos na organização desta exposição dedicada a um dos nomes relevantes da arte moderna do século XX nos EUA terem considerado que a série de pinturas onde figuram membros encapuzados do Ku Klux Klan (KKK) “precisa de ser melhor contextualizada devido ao momento político”, escreve o jornal New York Times.
A exposição Philip Guston Now, que devia ter sido inaugurada em Junho na National Gallery of Art de Washington mas que foi adiada devido à pandemia de covid-19, tinha um périplo previsto para passar pelo Museum of Fine Arts (Houston), pela Tate Modern (Londres) e, finalmente, pelo Museum of Fine Arts (Boston). “Depois de muita reflexão e amplas consultas, as nossas quatro instituições tomaram a decisão de adiar as sucessivas apresentações. Vamos adiar a exposição até a um momento em que pensamos que a poderosa mensagem de justiça social e racial que está no centro do trabalho de Philip Guston possa ser melhor interpretada”, lê-se numa declaração colocada esta semana no site da National Gallery of Art e assinado por todos os directores dos museus envolvidos. “Reconhecemos que o mundo em que vivemos é muito diferente daquele em que começámos a colaborar neste projecto há cinco anos. O movimento de justiça racial que começou nos EUA e irradiou para vários países à volta do mundo, juntamente com a crise de saúde global, levou-nos a fazer uma pausa.”
Com 125 pinturas e 70 desenhos de cerca de 40 colecções públicas e privadas, Philip Guston Now mostrava 25 obras com imagens que retratam o histórico e controverso movimento racista dos EUA, uma figuração a que o pintor voltou nos anos 70 enquanto explorava temas ligados à identidade americana, depois de um período em que se dedicou à pura abstracção. Judeu, de esquerda, as imagens ligadas aos supremacistas brancos surgiram logo nos anos 30 na sua obra para regressarem em força nos anos 70. Com uma figuração bastante ancorada na realidade social e política, Guston representou também temas ligados ao anti-semitismo e retratou políticos como Richard Nixon.
“Covarde” e “um insulto à arte e ao público”, foi a opinião de Darby English, um professor de História da arte na Universidade de Chicago e antigo curador-adjunto do Museum of Modern Art (MoMA), de Nova Iorque, citado pelo jornal americano.
Musa Mayer, filha do artista e responsável pela Guston Foundation, contestou a decisão: “Há meio século o meu pai fez um corpo de trabalho que chocou o mundo da arte. Não só violou o cânone do que devia pintar um artista abstracto naquele tempo em que havia uma crítica de arte especialmente doutrinária, como se atreveu a colocar ao espelho a América branca, expondo a banalidade do mal e o racismo sistémico com que ainda hoje nos confrontamos e lutamos.”
"Eles somos nós"
No corpo de pinturas mais concretamente dedicadas ao KKK, feitas entre 1971 e 1976, Philip Guston pinta com as suas cores pastel cenas onde não há confrontos violentos mas apenas pessoas encapuçadas na sua vida banal. “Eles planeiam, conspiram, andam de carro a fumar charutos. Nunca vimos os seus actos de ódio. Nem sabemos o que lhes vai na cabeça. Mas é claro que eles somos nós. A nossa negação, o nosso encobrimento”, acrescentou a filha, citada pelo site Artnet. “O meu pai atreveu-se a revelar a culpabilidade branca, o nosso papel partilhado, ao permitir o terror racista que ele testemunhou desde a sua infância, quando o Klan marchava abertamente e aos milhares nas ruas de Los Angeles.”
Os directores dos quatro museus defendem que têm a responsabilidade de ter em conta as necessidades do momento social e político. “Sentimos que é necessário reformular a nossa programação e, neste caso, recuarmos e trazer perspectivas e vozes adicionais para apresentar o trabalho de Guston ao nosso público. Esse processo vai levar tempo”, explicam na declaração conjunta, acrescentando que a exposição será adiada até 2024.
Sobre as imagens do KKK, o próprio artista dizia, citado pelo jornal britânico Guardian: “São auto-retratos … Eu vejo-me como estando por trás do capuz … A ideia do mal fascina-me … Quase que tentei imaginar-me a viver com o Klan”.
Numa publicação no Instagram, citada por vários jornais, Mark Godfrey, curador senior para a arte internacional da Tate Modern, escreveu que a decisão era “extremamente paternalista”, porque assume que o público não é capaz de interpretar as subtilezas do trabalho do artista. “Os museus têm-se mostrado receosos de expor e contextualizar o trabalho com que se comprometeram nas suas programações.”