Percurso acessível? Não é turismo, é “uma aventura radical”
No Dia Mundial do Turismo, fomos com Carlos Nogueira, que se desloca de cadeira de rodas, testar um dos itinerários acessíveis recomendados pelo Turismo de Portugal para Lisboa. A avaliação não é positiva.
Carlos Nogueira nunca foi ao Castelo de São Jorge. Lisboeta, com 53 anos, soube desde sempre que há sítios da cidade que não consegue visitar. Aos 13 meses, uma poliomielite, uma infecção no sistema nervoso central, fez com que perdesse o controlo dos membros inferiores. Até aos 30 anos, andou de ortóteses e canadianas. Desde então, é com a cadeira de rodas que se desloca no dia-a-dia pela área da Grande Lisboa, onde vive e trabalha.
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Carlos Nogueira nunca foi ao Castelo de São Jorge. Lisboeta, com 53 anos, soube desde sempre que há sítios da cidade que não consegue visitar. Aos 13 meses, uma poliomielite, uma infecção no sistema nervoso central, fez com que perdesse o controlo dos membros inferiores. Até aos 30 anos, andou de ortóteses e canadianas. Desde então, é com a cadeira de rodas que se desloca no dia-a-dia pela área da Grande Lisboa, onde vive e trabalha.
Lisboa está longe de ser uma cidade acessível, apesar de todos os avanços que têm sido feitos nos últimos anos. Uma das zonas mais difíceis de adaptar, devido à morfologia do terreno, é precisamente a zona histórica. Quando Carlos soube que um dos itinerários acessíveis recomendados na plataforma VisitPortugal era “Do Bairro Alto ao Castelo”, ficou surpreendido. “Criou-me expectativa”, diz ao PÚBLICO, a expectativa de visitar finalmente uma zona da cidade que sempre achou que lhe estava vedada. E por isso fez-se à estrada. “Lamentavelmente”, continua, “fiquei-me pela expectativa”.
“Liderar o turismo do futuro, uma das principais metas da Estratégia Turismo 2027, implica afirmar Portugal como destino acessível, inclusivo e sustentável”, diz uma representante do Turismo de Portugal, por escrito, ao PÚBLICO. Por isso, na plataforma VisitPortugal, estão disponíveis percursos acessíveis para 20 localidades portuguesas, definidas “considerando a importância turística da localidade, os pontos de interesse patrimonial/cultural existentes, o património classificado pela UNESCO e as condições de acessibilidade já existentes à época, assim como a distribuição a nível nacional, abarcando todas as regiões”.
Estes itinerários foram delineados após um levantamento das condições de acessibilidade para pessoas com mobilidade reduzida feito em 2015 pelo Instituto de Cidades e Vilas com Mobilidade, tendo em conta “sobretudo, as pessoas com limitação motora e o segmento sénior, embora também tenha sido considerada informação relevante para outros tipos de deficiência ou limitação”.
Do Bairro Alto ao Castelo: um itinerário acessível?
O itinerário acessível começa no Largo Camões, atravessa a baixa Lisboeta, vai do Rossio à Praça do Comércio e daí começa a subida para o Castelo de São Jorge.
Apesar de ser quase sempre uma dor de cabeça – pela dificuldade em encontrar lugares de estacionamento adaptados, pelo pavimento que lá encontra e pela quase totalidade de passadeiras mal desniveladas – a baixa lisboeta não é novidade para Carlos. Gosta de a visitar principalmente na altura do Natal, mas sabe que, quando vem, tem de vir com uma dose extra de paciência, já preparado mentalmente para todos os obstáculos que vai encontrar. Obstáculos esses que começam logo no estacionamento: na zona do Chiado encontra apenas quatro lugares para pessoas com deficiência. Não havendo lugar, terá de regressar a casa.
Segundo obstáculo: o pavimento que reveste grande parte da zona histórica, a calçada portuguesa. “Não havendo uma manutenção eficaz, o problema agrava-se, mas mesmo uma calçada bem mantida acaba por ser uma má solução para quem anda em cadeira de rodas, porque a trepidação está sempre lá”, explica ao PÚBLICO. Apesar do desconforto causado pelo pavimento e do perigo de poder encravar uma das rodas da frente no piso irregular, Carlos não defende que se acabe com a calçada que tem valor patrimonial. Acredita, no entanto, que existem soluções que podem coexistir pacificamente com a calçada portuguesa e garantir conforto e segurança a todos.
As passadeiras mal desniveladas são outro problema já familiar para Carlos. Do Bairro Alto ao Castelo, a excepção foi a passadeira bem desnivelada que encontrou no Rossio. Em todas as outras encontrou ressaltos que, por mais insignificantes que pareçam, podem condicionar a passagem de uma pessoa que se mova em cadeira de rodas, dependendo da gravidade da sua lesão e da mobilidade da sua cadeira de rodas. Como a lesão de Carlos lhe permite elevar as rodas da frente da cadeira, ou seja, deslocar-se, como diz, “em cavalinho”, Carlos conseguiu vencer alguns dos ressaltos. Noutros, teve de pedir um empurrão.
Apesar das dificuldades, Carlos consegue chegar até à Praça do Comércio. A capacidade física que tem e a roda FreeWheel que trouxe para acrescentar à sua cadeira, que faz o trabalho das duas rodas pequenas da frente e serve para ultrapassar mais facilmente obstáculos, permitiram-lhe vencer as adversidades e cumprir metade do caminho. É na Praça do Comércio que começa a subida para o Castelo de São Jorge – e é também aqui que começam os maiores problemas.
A plataforma VisitPortugal avisa desde logo que os transportes para o Castelo, “pequenos autocarros ou eléctricos”, não são acessíveis, pelo degrau que apresentam à entrada. Ir a pé também não é aconselhado, por serem “ruas íngremes” que “implicam maior esforço”. Por isso, é recomendado que as pessoas com mobilidade reduzida façam o trajecto num veículo adaptado. O de Carlos ficou na Rua Nova da Trindade, e ir buscá-lo, subindo de novo o Chiado, não é solução. A plataforma sugere ainda “uma forma de chegar ao castelo autonomamente”, que passa por utilizar os elevadores do Castelo e do Mercado do Chão do Loureiro “totalmente acessíveis a pessoas com mobilidade reduzida”. E seguimos.
A utilização dos elevadores acaba por ser de facto acessível, e Carlos vê-se então chegado à Costa do Castelo, de onde já consegue ver as muralhas do destino final. A partir daqui, a subida é íngreme, “um percurso com inclinações e pavimento irregular que podem dificultar um pouco a circulação”, como se lê no itinerário. Uns penosos 400 metros depois, no fim da Rua do Milagre de Santo António, já visivelmente cansado e desanimado, Carlos decide pôr fim ao passeio. E fica o sentimento de desilusão: “Eu não consigo perceber como é que um percurso destes pode ser considerado acessível”. A dificuldade do percurso é demasiado alta, até para Carlos: “Eu estou com uma cadeira de rodas muito boa, sou uma pessoa extremamente activa, tenho umas rodas especiais que me permitem eliminar muito do desconforto que se sente aqui, mas é impossível”.
Os elevadores foram uma agradável surpresa para Carlos, mas, para que o percurso seja verdadeiramente acessível, “a solução tem de passar pela disponibilização de equipamentos de tracção eléctrica que permita vencer estas pendentes e este pavimento, porque é impossível fazê-lo a braços e com uma cadeira de rodas convencional”. E deixa a sugestão: porque não instalá-los à saída do Elevador do Mercado do Chão do Loureiro? Só aí poderá dizer-se que este é um itinerário acessível. “Gostaria muito que quem considere este percurso acessível se sentasse numa cadeira de rodas e tentasse percorrer 50 metros desta Rua do Milagre de Santo António. 50 metros. Não é preciso mais”.