Faculdade de Direito abre “processo de inquérito” a professor que compara feminismo ao nazismo

Ex-director da instituição diz que “reina um sentimento de impunidade” na faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

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DANIEL ROCHA

A faculdade de Direito da Universidade de Lisboa decidiu abrir um inquérito, tendo em conta os factos vindos a público sobre as matérias leccionadas por Francisco Aguilar naquela faculdade que comparavam, entre outros exemplos, o feminismo ao nazismo.

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A faculdade de Direito da Universidade de Lisboa decidiu abrir um inquérito, tendo em conta os factos vindos a público sobre as matérias leccionadas por Francisco Aguilar naquela faculdade que comparavam, entre outros exemplos, o feminismo ao nazismo.

“Em relação aos recentes factos, dados a conhecer pelos órgãos de comunicação social, envolvendo o docente desta faculdade Professor Francisco Aguilar, a direcção da faculdade de Direito da Universidade de Lisboa vem comunicar que, tornando-se necessário apurar a relevância disciplinar daqueles factos e sua extensão, determinou a abertura do competente processo de inquérito”, lê-se no comunicado enviado à imprensa e assinado pela directora da faculdade.

Antes de esta decisão ter sido conhecida, o antigo director da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Jorge Duarte Pinheiro, já comentava ao PÚBLICO que eventuais medidas deviam ser tomadas antes de os factos chegarem à comunicação social: “Quando os alunos ou colegas dão algum sinal de que algo como um programa ou artigo daqueles existe, é preciso analisar os casos logo e tomar as medidas adequadas, e não esperar que cheguem à comunicação social para tomá-las. Os sinais existem, é preciso é coragem de exercer funções e agir de modo não indiferente”, diz o antigo director.

"Condeno tudo isto, mas não é um produto isolado"

Referindo-se a polémicas como a que envolve Francisco Aguilar, mas também a uma outra, já de 2018, com um outro professor, António Menezes Cordeiro, o antigo director afirma que “reina um sentimento de impunidade” na instituição e refere que, quando episódios como aqueles chegam a público, “tentar abafar-se” os casos na faculdade. Incomoda-o o “ambiente favorável a actos de leccionação e doutrinação insensata, para usar um enorme eufemismo”.

“Condeno tudo isto, mas não é um produto isolado, embora também não represente a faculdade toda. Mas, sim, incomodam-me os casos destes professores [Francisco Aguilar e António Menezes Cordeiro]. Francisco Aguilar tem um fundo ideológico comum a outros professores daquela faculdade. Há um punhado de professores, sim, com este pensamento, mas não podemos confundir com a faculdade toda”, ressalva.

Em causa, estão polémicas como a mais recente, envolvendo Francisco Aguilar que, em programas de duas unidades curriculares, Direito Penal IV e Direito Processual Penal III, de dois mestrados, tem pontos como julgar os agentes do “socialismo de género e identitário” como se julgaram os crimes do Holocausto, estudar as mulheres como “tribo vítima”, os “grupos LGBT” como “tribos aliadas” e o “homem branco cristão e heterossexual” como “tribo bode expiatório”. Encarar a “violência doméstica como disciplina doméstica” e a “advocacia dita ‘de género’ ou ‘de violência doméstica’” como “do torto contra a família”. Comparar as mulheres a pessoas desonestas, “espertas”, canalhas.

Na altura da publicação da notícia sobre estes programas, Francisco Aguilar disse ao PÚBLICO: “Há uma questão de respeito e vou esperar que seja possível a justa composição desta situação. Não posso abdicar da minha liberdade científica.”

Factos foram encarados com “indiferença e leviandade"

O docente, que foi absolvido do crime de violência doméstica no Tribunal Criminal de Lisboa, já tinha sido criticado numa reunião do conselho científico da faculdade em Julho a propósito de um pedido de voto de repúdio feito pela colega Inês Ferreira Leite, também professora de Direito Penal, na sequência da publicação de um artigo na Revista de Direito Civil da faculdade com ideias semelhantes.

Jorge Duarte Pinheiro refere que este facto relativo a Francisco Aguilar foi debatido nessa reunião, mas lamenta que a directora do faculdade e o presidente do conselho científico os tenham encarado com “indiferença e leviandade” e que, antes da comunicação social ter avançado com o caso, nenhuma medida tenha sido tomada. O PÚBLICO tentou contactar o presidente do conselho científico, por telefone, mas sem sucesso.

O outro caso que, em 2018, motivou polémica, envolveu António Menezes Cordeiro, professor da mesma instituição que defendeu, numa obra, ideias como, por exemplo, as empresas não poderem ser acusadas de discriminação por decidirem não contratar um homem para vigilante de um internato de rapazes caso este seja homossexual, ou por não contratarem uma mulher que se candidate a um trabalho de modelo apenas pelo facto de esta ser recém-casada. Ao PÚBLICO, na altura, o autor defendeu a escolha dos exemplos citados, garantindo que “a obra não tem qualquer conteúdo sexista” e que se discute apenas “a adequação do perfil à função”.

O antigo director salienta que António Menezes Cordeiro “é nada mais, nada menos, do que director do grupo de ciências jurídicas onde trabalha Francisco Aguilar”. E acrescenta: “E Francisco Aguilar escreve na Revista de Direito Civil que é dirigida por Menezes Cordeiro que pertence ao centro de investigação de Direito Privado também dirigido por Menezes Cordeiro”.

Jorge Duarte Pinheiro diz que, quando era director, em 2014 e 2015, nunca teve conhecimento de “coisas inacreditáveis” como as que envolveram estes dois professores, nem de “queixas internas”, mas admite que já se sabia qual era o “pensamento” de alguns docentes.

Helena Mourão, também professora de Direito Penal da faculdade, explica ao PÚBLICO que “não existe um controlo prévio dos programas” das cadeiras que são publicados, “por razões de liberdade científica”. E acrescenta que, ao longo do seu percurso na faculdade, há 19 anos, nunca tinha visto um programa como os das unidades curriculares Direito Penal IV e Direito Processual Penal III, leccionados por Francisco Aguilar.

O PÚBLICO tentou contactar, por telefone, a actual directora da faculdade, mas sem sucesso. Contactado, o secretariado da faculdade disse que a direcção da faculdade, para já, nada mais tinha a acrescentar do que o que consta do comunicado enviado relativo à abertura do inquérito.

Reformulação do programa e apuramento de responsabilidades

Também a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas (A.P.M.J.) já remeteu às autoridades académicas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa uma carta, considerando que o “teor do programa em questão viola a Constituição da República e a Lei Internacional por atentar de forma directa e intensamente discriminatória contra os Direitos Humanos das Mulheres” e solicitando “a reformulação do programa e o apuramento de responsabilidades”. O documento refere, entre muitas outras considerações, “espanto e consternação” com o teor das matérias em questão, referindo-se ao programa como um “conjunto de insanidades” e entendendo que representa “um acto de humilhação para qualquer estudante” que o frequente.

A associação pede que “sejam apuradas as correspectivas responsabilidades” que “envolvem, desde logo, o seu autor mas eventualmente também quem promoveu, ainda que de forma menos esclarecida, a possibilidade do exercício, por este docente, dos comportamentos cuja gravidade jurídica se deixou explanada”. Mais, acrescenta a nota: “Sem prejuízo, e atenta a gravidade dos factos em apreço, a A.P.M.J. não deixará de ponderar a eventualidade de vir a dar conhecimento formal dos mesmos a instâncias externas a essa Faculdade de Direito.”