A elite e os pais radicais (2)
Agora que começou a quebrar-se o tabu da homossexualidade — até na Igreja Católica e no CDS se aceitam os gays que se enchem de coragem e assumem a sua identidade sexual — o novo tabu é a identidade de género.
Uma leitora enviou um email a criticar a nova disciplina de Cidadania. Quem tivesse chegado de Marte e o lesse, ficaria alarmado. Escreve a leitora que não vai “deixar os filhos aprenderem na escola quantas posições existem para fornicar!!!”. No planeta Terra, ensinam coisas estranhas na escola.
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Uma leitora enviou um email a criticar a nova disciplina de Cidadania. Quem tivesse chegado de Marte e o lesse, ficaria alarmado. Escreve a leitora que não vai “deixar os filhos aprenderem na escola quantas posições existem para fornicar!!!”. No planeta Terra, ensinam coisas estranhas na escola.
Na mensagem, a leitora explica que não vive “de acordo com os instintos animais básicos” ou “instintos fisiológicos” e por isso não pode concordar com os conteúdos da disciplina. É preciso pôr o cinto de segurança. Fornicar? Instintos fisiológicos? A leitora está a falar de quê?
Ela explica: da “pouca vergonha” que se passa nas escolas portuguesas, da “escalada de degradação moral” da sociedade, da “inversão de valores”. O problema é de tal ordem que — escreve — “qualquer dia” as prisões vão estar “cheias de gente honesta e os ladrões todos cá fora!”.
Passei os últimos dias a tentar perceber o que perturba a franja da sociedade portuguesa mobilizada na campanha “Deixem as crianças em paz”, cuja hashtag tem “pegada” nos ultra-conservadores brasileiros. Falei com padres, professores, enfermeiros, pais e adolescentes, uma pequena amostra de terrestres, uns liberais, outros conservadores.
O que há de tão horrível no programa da disciplina de Cidadania que leva cidadãos a dizer publicamente que “deviam era partir as pernas” ao secretário de Estado da Educação João Costa?
Ouvi falar do “kit de educação sexual” e dos “pénis de esferovite” em tempos usados nas escolas públicas pela Associação para o Planeamento da Família — em particular nos anos da crise do HIV e da sida, quando o Estado percebeu que os adolescentes tinham relações sexuais desprotegidas e não sabiam pôr preservativos. Percebi também que, à excepção de algumas escolas estrangeiras, esses “kits” desapareceram das escolas portuguesas há mais de dez anos. A directora de uma escola, professora há 40 anos, nunca viu nenhum. “Educação sexual não é falar de sexo. Para palhaçadas não contem comigo!”
Percebi também que é tudo superficial e que os temas da Cidadania são tratados pela rama. Seria difícil de outro modo. A lei prevê seis horas por ano de Cidadania e Desenvolvimento para o 1.º e o 2.º ciclos e 12 horas por ano para o 3.º ciclo. Sublinho que é por ano. Uma vez que a disciplina tem seis temas obrigatórios a todas as idades — direitos humanos, igualdade de género, interculturalidade, desenvolvimento sustentável, educação ambiental e saúde —, mais 11 temas para os mais velhos (sexualidade, media, participação democrática, literacia financeira, segurança rodoviária, empreendedorismo, etc), estamos a falar do quê? De uma lavagem ao cérebro?
Sim, dirão, seis horas são muitas horas quando as crianças são esponjas. “Há ideias que estão a ser ditas nas escolas que podem perturbar a construção da identidade das crianças”, disse-me uma mãe. Fico a pensar: que ideia ou frase diabólica pode ser tão nociva na formação de uma criança? Que casos são esses? Que exemplos há? Tudo converge no bicho-papão da sexualidade.
O sexo é a coisa mais falada, mais escrita e mais vista desde que há registos humanos. Já leram a Bíblia, cheia de histórias de incesto, adultério e poligamia? Já viram a sinalética de Pompeia? No sexo, é tudo mais ou menos igual desde sempre. Só os tabus mudam.
Agora que começou a quebrar-se o tabu da homossexualidade — até na Igreja Católica e no CDS se aceitam os gays que se enchem de coragem e assumem a sua identidade sexual — o novo tabu é a identidade de género. Chamam-lhe “ideologia do género”, “marxismo do género” ou “sistema soviético de educação”, tentando dar ao assunto um carácter autoritário e anti-democrático.
Dizem estes pais que devemos aceitar a diferença, mas não podemos perturbar as crianças sobre quem elas são. Se nasce rapaz é rapaz, se nasce rapariga, é rapariga. A escola não deve dar ideias. Mas algum adolescente vai decidir que é gay ou bi ou trans porque ouviu umas frases nas aulas de Cidadania que o deixaram baralhado? Alguém acredita que, mesmo hoje quando se celebra a diferença, é fácil a um adolescente afirmar-se no mundo — em casa, na rua, na escola — como diferente da maioria?
Curioso, pensarão os marcianos. Onde estava a ira destes pais nas décadas e décadas em que a regra — a ideologia, a filosofia, a teoria, o sistema — obrigava os adolescentes a esconder que eram gays? Há politicamente correcto insuportável, há activismo histérico, há revisionismo chocante. Mudaram o nome de um edifício da Universidade de Edimburgo porque o que tinha era de um homem que, no século XVIII, defendeu ideias racistas. Por acaso era David Hume, pouco importa que seja um dos mais brilhantes pensadores do iluminismo. Paz à sua alma, de qualquer modo era um ateu, tanto lhe faz.
As crianças levam a sério o que dizem os professores ou outros adultos convidados para vir à escola. É um absurdo um adulto dizer “vocês ainda não sabem se são menino ou menina” a crianças de seis anos. Mas terá sido isso que lhes foi dito? E, se sim, isso aconteceu uma vez numa escola, uma das cinco mil escolas de Portugal, ou é a regra?
Os professores são um espelho da sociedade: religiosos e ateus, gostam ou não de telenovelas, lêem muito, pouco ou nada, acham que “no tempo de Salazar é que era bom” ou detestam o Estado Novo. Às vezes, propõem ideias absurdas, nas aulas, nas reuniões, no recreio. E cá está a família para as desmontar.