A “visão estratégica” de Costa Silva
A elaboração de um documento com estas características devia ter sido atribuída a um “Conselho Nacional Estratégico”. Um órgão pluripartidário, dotado de autonomia e na dependência directa do PM com a possibilidade de ser ouvido pelo Presidente da República. Mas as nossas elites não têm sabido conduzir o que é estrategicamente decisivo para Portugal.
“Nenhum vento nos será favorável se não soubermos o Porto de destino.”
Séneca (Ano IV a‐C)
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“Nenhum vento nos será favorável se não soubermos o Porto de destino.”
Séneca (Ano IV a‐C)
1. A pandemia provocada pela covid-19 é uma crise de consequências imprevisíveis ao nível sanitário, político e de segurança, com um impacto brutal económico e social, que veio acelerar os desafios estruturais que a maioria dos países já enfrentavam.
Temos que encontrar novo modelo económico e não podemos desperdiçar os enormes recursos da UE, no âmbito do plano de recuperação.
Isto vai exigir um enorme esforço da Administração Pública, dos agentes económicos e uma grande responsabilidade ao nível político.
É impensável desperdiçar esta oportunidade única de modernização do país e uma transformação da nossa economia para termos uma sociedade mais inclusiva, mais verde e mais digital.
Neste âmbito, é fundamental uma visão estratégica para os vários instrumentos que, ao longo de dez anos, vão enquadrar a execução dos fundos comunitários.
Foi neste contexto que esteve em consulta pública a “Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030”, da autoria de António Costa Silva, formulada a pedido do primeiro-ministro (PM).
2. A primeira questão que se coloca é sobre o mandato que foi dado a Costa Silva: “o que fazer no day after?” Isto sugere um plano para o pós-pandemia, quando na realidade se trata de um plano que se divide em duas fases: resposta à pandemia e lançar as bases para um novo paradigma de desenvolvimento sustentável.
O documento apresentado pelo consultor do Governo espelha o conhecimento vasto e a experiência diversificada do seu autor. É claramente mais um estudo aplicado de economia extenso nas generalidades e pouco concreto nos detalhes, do que um documento estratégico centrado nas principais lacunas, prioridades e metas nacionais.
O que esta “visão” oferece para o plano é uma concepção de economia, tendo em vista a formulação de uma Estratégia Nacional (EN) ou Estratégia Global do Estado, que ainda não existe.
A impressão que se retira é que o documento é uma mescla de ideias, algumas contraditórias entre si, que deixa de lado temas importantes.
Os principais problemas praticamente não abordados são o endividamento, a inversão da pirâmide demográfica, a falta de produtividade, a desigualdade económica e social, os baixos níveis de poupança, a ausência de um enquadramento propício para atrair o investimento directo estrangeiro e dinamizar o nacional, a falta de acesso a uma educação de qualidade e a descentralização territorial. E um sistema de justiça e regulação incapazes de acabar de vez com a corrupção. Esta palavra nem sequer é mencionada.
Devia estar explicitado qual o novo modelo de desenvolvimento, que o país reclama, enquadrado por uma EN, em linha com uma Estratégia Europeia, que assegure continuidade às opções assumidas. E melhor articulação sectorial, permitindo enquadrar as reformas estruturantes. Temos muitos planos mas não existe planeamento estratégico.
A dinâmica das crises provocadas pelas fragilidades da UE e pela pandemia demonstra a necessidade urgente de um amplo consenso para uma EN – por mais de uma legislatura –, o que deve constituir motivação central para a reflexão política.
A referida EN devia enquadrar o plano de recuperação económica em preparação pelo Governo para aplicar os fundos europeus e não um plano com medidas avulsas – com projectos megalómanos –, sem identificar prioridades e quantificar custos, de acordo com as fontes de financiamento.
3. O documento pode ser considerado um excelente instrumento de gestão orientado para a produção de decisões e de acções que esclarecem o que o país pretende alcançar a partir da formulação do que é. Porém, não é uma visão estratégica para um plano, porque não responde à questão: como é que lá podemos chegar?
Por que se pretende realçar a falta de visão estratégica? Porque não aponta novos caminhos, cujos riscos possamos avaliar.
Costa Silva faz uma análise interessante das tendências, mas não é claro nem completo no diagnóstico dos principais problemas estruturais do país e só responde em parte às questões: o que é o país e onde se encontra? É pobre na avaliação prospectiva.
É um facto que em Portugal a principal debilidade das políticas públicas está menos na identificação dos problemas e muito mais na forma como se operacionalizam as respostas de forma adequada. E se fiscaliza a implementação dos projectos.
A “visão” de Costa Silva articula de forma ajustada uma perspectiva sobre o nosso contexto geopolítico e geoeconómico com opções sobre infra-estruturas e orientações para as qualificações e investimento na ciência e inovação com opções energéticas adequadas. Mas nem todas serão consensuais, nomeadamente o hidrogénio verde que, pela sua complexidade, carece de mais estudos.
Neste âmbito, parece que a aposta, no médio e longo prazo, deverá centrar-se na construção da rede ferroviária com ligação à Europa; transporte de mercadorias; desenvolvimento dos portos; transição digital pelo menos na Administração Pública; requalificação das pessoas; no incremento do investimento na ciência e tecnologia e ser feita a reconversão industrial.
Sobre a Europa, o documento de Costa Silva é simplesmente omisso, ao contrário de documentos estratégicos de outros países, como é o caso da Alemanha.
4. A elaboração de um documento com estas características devia ter sido atribuída a um “Conselho Nacional Estratégico”. Um órgão pluripartidário, dotado de autonomia e na dependência directa do PM com a possibilidade de ser ouvido pelo Presidente da República. Mas as nossas elites não têm sabido conduzir o que é estrategicamente decisivo para Portugal.
Tudo aquilo que o documento refere já foi mais ou menos amplamente discutido. Contudo, há falta de visão e ênfase em temas como a Educação, Desporto, Saúde e Justiça, o papel das empresas e sua ligação às Universidades, política fiscal competitiva e as áreas dos investimentos público-privados.
Com aquele documento existe o risco de se propor soluções erradas para os problemas certos. Ou de propor soluções que, apesar de certas, são impossíveis de realizar, acabando assim por agravar o problema que se propunham resolver.
As principais tendências geopolíticas estão bem sistematizadas, pois os desafios que se colocam exigem informação geoestratégica e uma visão global das cadeias de valor. O desafio para a Europa – para Portugal é uma enorme oportunidade – é compreender que tem de se relocalizar aquilo que ao longo de décadas foi deslocalizado na produção para outras regiões do mundo.
Daí a oportunidade de se apostar na reindustrialização, na reconversão de muitos sectores industriais, de valorizar os nossos recursos naturais, de combater o nosso défice alimentar.
A grande virtude da “Visão Estratégica” de Costa Silva é estimular a reflexão. Dar início ao debate. E devolver ao Governo a responsabilidade de implementar estas ideias e projectos.