Ferrovia – quanta mentira para proteger um monopólio
As soluções técnicas que existem para ligar as duas bitolas não são viáveis para comboios de mercadorias e, mesmo para passageiros, são soluções temporárias ou para curtas distâncias.
Volto à questão da ferrovia porque os diversos intervenientes do Governo e afins, como da empresa Medway, tudo fazem para tornar complicado e difícil de compreender o que na verdade é simples. Nesse esforço de obscurecer a realidade, não hesitam mesmo em mentir contando com o desconhecimento, por vezes com a inocência, das pessoas. Vejamos um exemplo:
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Volto à questão da ferrovia porque os diversos intervenientes do Governo e afins, como da empresa Medway, tudo fazem para tornar complicado e difícil de compreender o que na verdade é simples. Nesse esforço de obscurecer a realidade, não hesitam mesmo em mentir contando com o desconhecimento, por vezes com a inocência, das pessoas. Vejamos um exemplo:
O jornal PÚBLICO publicou uma notícia com o seguinte título: “Bruxelas diz que não é necessário mudar a bitola na Península Ibérica.” Como a carta do senhor Herald Ruijters, cuja posição na UE não vem assinalada, foi enviada para mim e para o professor Mário Lopes, suponho que devemos saber o que a carta diz. Por exemplo: “ A interoperabilidade da ferrovia na Península Ibérica e no resto da UE é de grande importância. Razão porque nós criámos o TEN-T Networks, nomeadamente o Corredor Atlântico que liga Portugal a Espanha e ao resto da Europa através de França. Estas novas linhas que foram ou serão construídas e as que serão melhoradas nesse corredor até 2030 (e.g. Lisboa-Porto, Sines-Grândola-Lisboa-Mérida) criarão uma bitola UIC na rede de Portugal.” [1]
Acrescenta depois: “Dito isto, a bitola UIC não é necessária em todo o lado. De facto, uma mudança total da bitola na Península Ibérica não é necessária e precisaria de investimentos maciços, também ao nível dos diferentes portos, cujo acesso se faz com a bitola ibérica. Do ponto de vista jurídico, o Regulamento TEN-T só impõe a bitola UIC nas novas linhas (depois de 2014). Esta é também a solução seguida em Espanha. Contudo, outras soluções técnicas existem para mudar da bitola ibérica para a bitola UIC, incluindo um terceiro carril, travessas polivalentes e mesmo eixos variáveis.”
Claro que o articulista não publicou nada disto, aproveitando apenas a nota de existirem soluções técnicas para ligar as duas bitolas, ainda que sejam soluções não viáveis para mercadorias e, mesmo para passageiros, serem soluções temporárias ou para curtas distâncias. Bem pelo contrário, publicaram o seguinte: “Na resposta aos defensores da mudança de bitola, a Comissão Europeia diz que, para a interoperabilidade ferroviária, a electrificação, a capacidade das linhas para comboios de 740 metros e a eliminação de barreiras administrativas são mais importantes do que a bitola.” Poderiam ter acrescentado os sistemas de controlo e de segurança.
Qualquer pessoa com miolos para pensar conclui por si só o absurdo desta afirmação, de construir uma via férrea por fases. Como as linhas portuguesas são do século XIX e cheias de curvas, subidas e descidas, alterar primeiro os traçados para eliminar as curvas e as pendentes, mantendo a bitola ibérica, para permitir os comboios de 740 metros, para depois, suponho, fazerem a electrificação e mais adiante os sistemas de controlo e de segurança. Depois disso e dos milhares de milhões de euros gastos, mudava-se a bitola, suponho que o mais tarde possível para, novamente suponho, permitir que a empresa protegida pelo Governo, a Medway, possa, entretanto, amortizar os seus equipamentos em bitola ibérica.
Claro que os subscritores do Manifesto, os tais defensores da mudança da bitola, como referido no texto do PÚBLICO, que não são estúpidos, andam há anos a propor uma coisa bastante mais simples e mais barata: construir uma linha nova em bitola UIC para comboios de mercadorias de 740 metros, electrificada e com os mais modernos sistemas de segurança e controlo, isto é, fazendo tudo de uma vez, mas rápido e poupando dinheiro e a paciência dos exportadores.
Aliás, a solução preconizada pelo PÚBLICO anda a ser seguida há vinte anos na linha de Lisboa ao Porto. De acordo com os dados publicados recentemente, já custou aos contribuintes portugueses 1500 milhões de euros e as cerca de três horas de viagem continuam como há um quarto de século. Se é isso que o Governo e o articulista do PÚBLICO pretendem, que o digam, por amor à verdade e à racionalidade das decisões políticas.
Sobre as tão faladas novas tecnologias, se existissem, nomeadamente para mercadorias, o que não é o caso, seria apenas para manter o monopólio da Medway. A razão é simples: nenhuma empresa europeia iria investir num equipamento caro apenas para entrar em Portugal com os seus comboios, um pequeno mercado no extremo da Europa. Essas empresas também não são estúpidas. O que coloca a Medway na encantadora posição de não ter concorrência e de poder praticar os preços que quiser, o que aliás já vem fazendo. Ou seja, a recusa do Governo em explicar quais as novas tecnologias milagrosas que pretende utilizar serve apenas para proteger o mercado ferroviário português, leia-se Medway, da concorrência, como afirmado pelo ex-ministro Pedro Marques. Depois, os exportadores portugueses que paguem a conta.
[1] A tradução é da minha responsabilidade