Chegou o momento de a UE moldar o sistema internacional
Pelo menos até às eleições norte-americanas de novembro, e muito provavelmente depois destas, a posição de liderança dentro do sistema multilateral está vaga. Isto representa uma oportunidade para a UE se tornar uma interveniente internacional mais ativa.
À medida que os líderes mundiais iniciam reuniões de alto nível para assinalar o 75.º aniversário das Nações Unidas (ONU), a pandemia de covid-19 tem destacado a perturbadora dimensão em que a cooperação multilateral está a vacilar dentro e fora do sistema da ONU.
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À medida que os líderes mundiais iniciam reuniões de alto nível para assinalar o 75.º aniversário das Nações Unidas (ONU), a pandemia de covid-19 tem destacado a perturbadora dimensão em que a cooperação multilateral está a vacilar dentro e fora do sistema da ONU.
Confrontados com o desafio global de uma pandemia na última primavera, os governos nacionais e os organismos regionais retiraram-se cada um para seu canto. Os Estados Unidos (EUA) fugiram a qualquer tipo de responsabilidade no contexto do sistema internacional, enquanto a China tentou desviar as instituições a seu favor. A Europa foi apanhada entre ambos, e, como resultado, as instituições da ONU, tais como a OMS e o Conselho de Segurança da ONU, estão num impasse em muitos processos.
Uma sondagem encomendada no início deste ano pelo Conselho Europeu das Relações Exteriores (ECFR) mostra que os europeus estão insatisfeitos com esta falta de liderança global. A perceção dos EUA como aliado e interveniente caiu abruptamente em toda a Europa. As maiorias em todos os Estados-membros, exceto Itália, Polónia e Bulgária (onde existem grandes minorias), dizem que a sua opinião sobre os EUA piorou durante a crise, e o número de inquiridos que sentiram que os EUA tinham sido um aliado importante para o seu país nesta crise foi cada vez mais pequeno, apresentando a Itália a maior percentagem, com apenas 6%.
As perceções sobre a China e a Rússia também caíram entre quase todos os grupos de inquiridos em quase todos os países. A culpabilização da China pelo surto da crise do coronavírus na Europa é elevada, suportada pela maioria dos Estados-membros da UE abrangidos, formando Espanha e Bulgária as exceções.
Como os e as participantes da Assembleia Geral das Nações Unidas questionarão esta, semana das suas webcams, de onde virá a liderança global?
Contrariamente ao que se esperava, apesar da atual falta de promessas no sistema da ONU, este poderá ser o momento multilateral da União Europeia. 63% dos europeus acreditam que a crise mostrou a necessidade de mais cooperação europeia e, quando na nossa sondagem perguntámos como a Europa deveria mudar após a crise, a maior resposta, com 52%, foi que a UE deveria dar uma resposta mais coordenada às ameaças e desafios globais.
Para os europeus, uma das maiores ameaças é o desafio climático. Os eleitores continuam a repetir a mensagem nas urnas – como ficou evidenciado nas eleições para o Parlamento Europeu no ano passado, nas eleições autárquicas francesas no início desta primavera e também na ascensão dos Verdes como candidato sério ao governo nas eleições alemãs do próximo ano – de que querem uma liderança ambientalmente responsável. Isto é suportado pelos dados das sondagens da ECFR. O apoio a uma maior atenção ao combate às alterações climáticas cresceu em todo o lado durante a crise do coronavírus – chegando aos 61% no Reino Unido e aos 60% em Espanha – com aqueles que são mais solidários à causa a aumentar muito mais, em todos os países abrangidos, do que aqueles menos solidários.
O discurso de Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, sobre o Estado da União Europeia, na semana passada, pareceu dar ouvidos a esta mensagem, assumindo finalmente o compromisso de pelo menos 55% de redução das emissões de carbono até 2030. Além disso, anunciou a ambição de angariar pelo menos 30% dos 750 mil milhões de euros do fundo de recuperação através de títulos de dívida ecológicos. Estes foram anúncios ousados e bem claros.
Mas embora houvesse também a intenção de melhorar o plano da Europa no seu envolvimento multilateral – com a promessa de liderar a reforma dos sistemas da OMS e da OMC e o reconhecimento de que a Europa precisa de tomar posições claras e ações rápidas em assuntos globais –, ficou por definir como tal será feito. E com as divisões europeias em clara evidência nas últimas semanas sobre a crise migratória do Mediterrâneo, a situação na Bielorrússia e até a resposta ao envenenamento de Alexei Navalny na Rússia, este reconhecimento foi uma parte do discurso de Von der Leyen que pareceu soar um pouco oco.
Pelo menos até às eleições norte-americanas de novembro, e muito provavelmente depois destas, a posição de liderança dentro do sistema multilateral está vaga. Isto representa uma oportunidade para a UE se tornar uma interveniente internacional mais ativa. Os eleitores europeus estão dispostos a fazê-lo, uma vez que sabem que as questões que os mantêm mais alerta, desde o clima até à forma de lidar com a próxima crise sanitária, só podem ser tratadas através de uma cooperação internacional mais forte. Um ano antes da COP26, a UE pode utilizar o Pacto Ecológico Europeu (Green Deal) – uma estratégia de crescimento para permitir à UE chegar a zero emissões líquidas de gases com efeito de estufa até 2050 – para liderar os esforços globais em empurrar a ação climática para o topo das agendas de todos os governos. Além disso, também precisa de encontrar o equilíbrio certo entre a construção da soberania sanitária europeia e a liderança global no desenvolvimento e distribuição de uma eventual vacina contra a covid-19.
No que diz respeito ao comércio, a UE deve pressionar outras potências multilateralistas para defender o comércio justo, a fim de assegurar que as regras comerciais são seguidas e que os dados são partilhados de forma adequada. E, na agenda digital, deveria investir recursos em organismos de normalização, a fim de desenvolver uma voz europeia forte na definição das bases do futuro digital.
Mas, para aproveitar a oportunidade deste potencial momento multilateralista, os líderes europeus precisam finalmente de se libertar das grilhetas das forças populistas que têm modelado o debate durante demasiado tempo. É tempo de defender que os governos europeus protegem melhor os interesses dos seus cidadãos quando olham para o exterior, e não para dentro.
O passo certo para maior segurança neste mundo incerto é moldar o sistema e não afastarmo-nos dele.
Susi Dennison é diretora do programa “European Power” e investigadora principal no Conselho Europeu das Relações Exteriores (ECFR)
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico