Valentina e os juízes: em defesa de Maria Clara Sottomayor
A atuação do Conselho Superior da Magistratura neste caso deve ser cuidadosamente acompanhada pela sociedade civil porque o que está em causa, em última análise, é se, quando e como pode uma magistrada expressar livremente o seu pensamento num Estado de Direito Democrático.
Valentina, menina serena e dócil, morreu aos nove anos de idade, aparentemente espancada e queimada com água quente pelo pai, em casa de quem residia temporariamente durante o confinamento, de onde já havia anteriormente fugido e que tinha o especial dever de a proteger. Todos gostaríamos de ter tido a oportunidade de a salvar.
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Valentina, menina serena e dócil, morreu aos nove anos de idade, aparentemente espancada e queimada com água quente pelo pai, em casa de quem residia temporariamente durante o confinamento, de onde já havia anteriormente fugido e que tinha o especial dever de a proteger. Todos gostaríamos de ter tido a oportunidade de a salvar.
A conselheira Clara Sottomayor comentou a morte de Valentina na página de Facebook da magistrada Dulce Rocha, que supunha ser privada. Teve conhecimento, no passado dia 9 de setembro, através do semanário Expresso, de que o Conselho Superior da Magistratura (CSM) lhe poderia aplicar uma sanção disciplinar com fundamento nos aludidos comentários, que teriam gerado “uma onda de críticas por parte de magistrados e advogados por violar o dever de reserva e a presunção de inocência”. Depois de publicada esta notícia, o CSM emitiu uma nota de imprensa a esclarecer os exatos contornos do conteúdo da notificação que deliberou fazer à senhora conselheira na sua reunião plenária, do dia 8 de setembro, e que tinham sido incorretamente noticiados. Por fim, a senhora conselheira foi oficialmente notificada da referida deliberação de o CSM lhe pretender aplicar uma “sanção de advertência não registada”.
Causa perplexidade que o CSM vise aplicar a aludida sanção por eventual violação do dever de reserva a que a senhora conselheira se encontra estatutária e deontologicamente obrigada e não assegure, simultaneamente, a absoluta natureza confidencial do processo de averiguações que abriu para o efeito, impedindo o acesso por jornalistas a relatórios e/ou atas que integram apreciações sobre a mesma. Não se encontravam os elementos recolhidos nesse processo enquadrados por um regime de segredo que visava proteger o bom nome e reputação profissional da senhora conselheira?
Deve considerar-se Clara Sottomayor como tendo sido notificada a partir do momento em que leu o Expresso ou a partir do momento em que recebeu a comunicação oficial da deliberação desta entidade administrativa independente, que exerce a ação disciplinar relativamente aos magistrados judiciais?
Outras questões importantes decorrem deste processo de averiguações aberto contra Clara Sottomayor. Quantos outros magistrados foram, nos últimos anos, alvo de sanções disciplinares por não terem respeitado o dever de reserva? Como tem o CSM exercitado a margem de discricionariedade inerente ao exercício de qualquer função disciplinar perante situações semelhantes aquela em que se encontra a senhora conselheira e que são do conhecimento público?
A resposta a estas questões não terá qualquer utilidade para Valentina, que morreu e nada a fará regressar da noite escura para onde, numa agonia lenta, entrou. Mas outras Valentinas e “infelizes Etelvinas” (como, por lapso, Valentina é designada num dos relatórios do CSM) existem no nosso país e carecem de proteção adequada do Estado de Direito Democrático. Para essa proteção muito tem contribuído o trabalho, nos últimos trinta anos, das senhoras magistradas Clara Sottomayor e Dulce Rocha, incansáveis defensoras dos direitos humanos das crianças. Incansáveis defensoras dos direitos dos filhos de todos nós, que podem, em qualquer momento, ser vítimas inesperadas das diferentes formas que a violência reveste.
A atuação do Conselho Superior da Magistratura neste caso deve ser cuidadosamente acompanhada pela sociedade civil porque o que está em causa, em última análise, é se, quando e como pode uma magistrada expressar livremente o seu pensamento num Estado de Direito Democrático, no exercício da sua cidadania ativa, em particular em situações em que são ofendidos os direitos humanos dos mais vulneráveis de entre nós.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico