As telas da igreja de Santa Isabel, jóia artística da Lisboa de setecentos

O esforço de intervenção abriu campo à classificação da igreja pela DGPC, corolário natural deste processo integrado de intervenção pluridisciplinar.

Os resultados obtidos pela recuperação integral da igreja de Santa Isabel, no pulmão de Campo de Ourique (através de um ambicioso projecto pluridisciplinar, coordenado por João Appleton e pelo padre José Manuel Pereira de Almeida, que mereceu ser galardoado com o prestigiado Prémio Vilalva da Fundação Gulbenkian), só podem ser uma boa notícia para quem defende o património artístico nacional e luta pela sua plena revalorização. O templo passa a ser digno de visita não só por causa do celebrado tecto concebido pelo pintor suíço Michael Biberstein (1948-2013) como por outras valências, desde a talha do altar-mor (Silvestre Faria Lobo) à escultura estofada e policromada (Santa Isabel, provável oficina de Joaquim Machado de Castro) e às nove pinturas de altar (todas de 1764) que enriquecem o seu acervo e podem ser plenamente admiradas após o restauro a que foram sujeitas. Tudo torna esta igreja, também, um espaço museológico especialmente cativante pela relação estética que nela se estabelece entre períodos distintos da comunicação artística (pictórica e não só), e em que o sublime céu de Biberstein não pode deixar de assumir o elemento aurático do discurso.

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Os resultados obtidos pela recuperação integral da igreja de Santa Isabel, no pulmão de Campo de Ourique (através de um ambicioso projecto pluridisciplinar, coordenado por João Appleton e pelo padre José Manuel Pereira de Almeida, que mereceu ser galardoado com o prestigiado Prémio Vilalva da Fundação Gulbenkian), só podem ser uma boa notícia para quem defende o património artístico nacional e luta pela sua plena revalorização. O templo passa a ser digno de visita não só por causa do celebrado tecto concebido pelo pintor suíço Michael Biberstein (1948-2013) como por outras valências, desde a talha do altar-mor (Silvestre Faria Lobo) à escultura estofada e policromada (Santa Isabel, provável oficina de Joaquim Machado de Castro) e às nove pinturas de altar (todas de 1764) que enriquecem o seu acervo e podem ser plenamente admiradas após o restauro a que foram sujeitas. Tudo torna esta igreja, também, um espaço museológico especialmente cativante pela relação estética que nela se estabelece entre períodos distintos da comunicação artística (pictórica e não só), e em que o sublime céu de Biberstein não pode deixar de assumir o elemento aurático do discurso.

Sendo Santa Isabel ainda hoje, estranhamente, uma das mais esquecidas igrejas da cidade de Lisboa, o esforço de reabilitação desse espaço setecentista, que este projecto assumiu em todas as suas vertentes, abriu campo não só ao seu processo de classificação nas instâncias da DGPC, como ao seu maior conhecimento no contexto da História da Arte portuguesa, sem se esquecer o lugar que passa a ocupar com a sua plena integração nas rotas turístico-culturais da cidade. O esforço de intervenção abriu campo à classificação da igreja pela DGPC, corolário natural deste processo integrado de intervenção pluridisciplinar. Para quem ainda não a conhece, urge visitar e descobrir a igreja de Santa Isabel, jóia da construção portuguesa do tempo de D. José I e, por via da presença do céu de Biberstein, um testemunho exaltante dessa marca de insuperável qualidade que é o poder de trans-contemporaneidade das artes.

Na verdade, tratou-se sempre de um templo mal-amado, fosse porque a sua construção (patrocinada por D. Tomás de Almeida, o primeiro Patriarca de Lisboa) coincidiu com a tragédia do terramoto do 1º de Novembro de 1755, fosse porque nunca existiu margem crítica para se valorizar a chamada “arquitectura pombalina” fora da sua vertente civilista e urbanística — e desse pecado original, bem escalpelizado por Paulo Varela Gomes, se ressente a impressão negativa causada pelo seu espaço construtivo. A verdade, porém, é que o processo de conservação, restauro e inerente investigação permitiu aclarar uma série de saberes que a desmemória dos tempos ocultava e que revalorizam o monumento, tanto na marca da arquitectura como na do seu recheio.

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Pintura feita pelo artista Michael Biberstein no tecto da igreja lisboeta de Santa Isabel daniel rocha

A definitiva traça arquitectónica, sabemo-lo agora, data de 1754 e coube à responsabilidade do Tenente Coronel Carlos Mardel (1695-1763), facto que é uma das novidades substantivas da investigação realizada para este projecto. O húngaro Mardel fora, como de há muito foi atestado por José-Augusto França, um dos responsáveis máximos da reconstrução pombalina da Baixa. A traça de Santa Isabel, aprovada em 6 de Janeiro dessa ano pela mesa da irmandade, substituía uma outra de 1742 da responsabilidade do Capitão Rodrigo Franco, arquitecto da Mitra Patriarcal (dado apurado pela investigação de Rui Mesquita Mendes), considerada todavia inexequível pela linguagem tardo-barroca, facto que, ainda em vida do Patriarca, impõs exigentes reformulações por parte de uma irmandade ávida de seguir novos gostos. O peso institucional de Carlos Mardel, morador na nova freguesia em casas precisamente junto a Santa Isabel, pesou na decisão tomada, o que explica que o “risco para a nova Igrª… feito pelo Thenente Coronel Carlos Mardel que constava de quatro Altares por banda e dous Leteraes, ao q. mostrava fundos, Altar mayor porta principal, e duas travessas (…)”, prevalecesse sem reticência dos mesários, como o atesta, com pormenores, o valioso acervo documental ainda conservado no cartório da igreja. A obra de pedraria seria célere e competentemente cumprida pelo mestre Teotónio Alexandre da Costa.

Quanto às telas dos altares, sabemos que datam de 1764 e correspondem àquela que terá sido, acaso, a primeira grande empreitada de pintura sacra realizada na cidade a seguir ao terramoto de 1755, em anos de profunda crise, em que as encomendas públicas escasseavam. É, por isso, muito importante saber-se qual era o gosto artístico imperante na época de D. José I em empresas congéneres, e quais os recursos dos mestres escolhidos. A documentação existente, a que acrescem as informações do bem informado memorialista Cyrillo Volkmar Machado (1822), deixam perceber que os melhores pintores activos na cidade se perfilaram para este trabalho. Salvo o pintor régio Francisco Vieira Lusitano (que não aparece, por certo ocupado com outros encargos), surgem-nos aqui todos os artistas importantes da era joséfica: o francês Bernard Foît, o genovês Pellegrino Parodi e os portugueses Roque Vicente, Bruno José do Vale, Domingos da Rosa e Inácio de Oliveira Bernardes, além de Joaquim Manuel da Rocha e do jovem Pedro Alexandrino de Carvalho (que colabora na “glória angelical” da tela Sagrada Família, de Roque Vicente). Encontram-se aqui patentes as tendências dominantes na arte do tempo de D. José I: a vertente tardo-barroca mais tradicional (R. Vicente, D. Rosa), a influência romanista (Parodi, Bernardes), os exercícios de um neoclassicismo embrionário (Bruno) e, até, apontamentos de um civilismo “rococó” (na tela S. Gonçalo de Amarante do francês Foîx).

Tudo foi devidamente restaurado pela equipa da Nova Conservação, de Nuno Proença, e os resultados podem ser agora avaliados com a devida atenção crítica, coisa que era difícil face ao péssimo estado das telas... Existem peças reveladoras de fidelidades anacrónicas, as que não escondem o recurso a modelos de gravuras reconhecíveis, e outras há que mostram um esforço de inovação e aggiornamento deveras assinalável: é o caso da Aparição de Nossa Senhora da Arrábida a Hildebrando e seus companheiros, de Inácio de Oliveira Bernardes, não por acaso um artista formado na Academia de Roma e com uma sensibilidade pictural muito acima da mediania.