E a Justiça? O Governo da Justiça
A Justiça, porque é administrada em nome do Povo, não pode assentar em sete corporações que vivem dentro do seu mundo, desligadas de qualquer responsabilidade ou acompanhamento político, administrativo ou cívico.
Diz a nossa Constituição que os “Tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do Povo” (Art. 202.º, n.º 1). Contudo, culturalmente, todos olhamos para o mundo da Justiça e pouco reparamos nos tribunais. E com razão. A justiça é um conceito político e sociológico, ao passo que os tribunais são realidades concretas, mas constitucionalmente relevantes.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Diz a nossa Constituição que os “Tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do Povo” (Art. 202.º, n.º 1). Contudo, culturalmente, todos olhamos para o mundo da Justiça e pouco reparamos nos tribunais. E com razão. A justiça é um conceito político e sociológico, ao passo que os tribunais são realidades concretas, mas constitucionalmente relevantes.
Ouvimos dizer que “a justiça está em crise” ou “fez-se justiça” mas, naturalmente, não dizemos que os “tribunais estão em crise”. E assim deve ser. Na realidade, nenhum de nós nem, muito menos, o poder político, pode condicionar as decisões dos tribunais. Neste particular aspecto funciona, de pleno, a separação de poderes.
No entanto, quando pretendemos apurar se a Justiça age em sintonia com os objectivos constitucionais e legais, o que resultará do conjunto da actividade dos tribunais, aqui, neste ângulo exclusivamente político, cumpre aos demais órgãos de soberania acompanhar (auditar?) o seu funcionamento, a sua eficácia, a sua representação social. Mas, mesmo neste segundo ângulo de visão, impõe-se cindir tal acompanhamento em dois patamares.
Num primeiro, enquanto órgãos de soberania, caberá em exclusivo à Assembleia da República, em primeira linha e, secundariamente, ao Presidente da República, acompanhar (auditar?) a sua adequação ao regime democrático, se servem para fortalecer e dignificar o Estado de direito, se o progresso do próprio direito se opera pela acção da soberania entregue aos tribunais. Este é o patamar em que o Governo não pode intervir.
Mas, num segundo patamar, enquanto serviço público, cabe de pleno, quer à AR, quer ao Governo, a necessidade de auditar se o serviço da justiça se compagina com os objectivos legais e constitucionais. Assim, a qualidade do serviço, os seus custos, a dimensão e excelência dos seus profissionais, o cumprimento das regras deontológicas, etc., etc., são matérias que se não prendem com a soberania e que devem ser auditadas por todos os demais órgãos de soberania e, mesmo, pelo Governo (e, se necessário, por entidades externas independentes).
Nada justifica, na verdade, o actual absoluto abandono dessa ética e dessa eficácia da governança da Justiça. E tudo isto tem uma, ou várias, causas. Senão, vejamos:
Vivemos num universo de 11.000 agentes da justiça, sendo 3500 magistrados e cerca de 7700 funcionários judiciais. Temos ainda 3750 agentes de execução (o braço armado dos tribunais e demasiado penoso para os cidadãos) e quase 37.000 advogados. Ora, todas e cada uma destas profissões goza do seu auto-governo. Enumeremos: Conselho Superior da Magistratura (juízes); Conselho Superior do Ministério Público (procuradores); Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (juízes dos Tribunais Administrativos); Ordem dos Advogados (advogados); Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (solicitadores e agentes de execução); Conselho dos Oficiais de Justiça (Oficiais de Justiça).
Todas estas corporações vivem para si e só para si, sendo independentes umas das outras, o que é natural; o que não é admissível é a limitação aos interesses dos próprios, parcialmente pelos próprios, olhando, por regra, para dentro e só para dentro da sua profissão. A excepção é a Ordem dos Advogados que, até 2004, assumia como matriz política a representação dos interesses dos cidadãos e conferia prioridade à defesa da cidadania.
Perante este panorama hiper-corporativo, parece chegado o momento de indagar se os dois patamares de acompanhamento (auditorias) são cumpridos e executados. A resposta só pode ser negativa. Nenhuma das corporações presta contas, de qualquer natureza, seja perante qualquer órgão de soberania, seja perante qualquer outra autoridade.
Atrevo-me a dar um exemplo: foi inscrito no Código do Processo Civil um dever de as secretarias remeterem mensalmente, ao presidente de tribunal, a identificação dos atrasos dos juízes, superiores a três meses, cabendo ao presidente do tribunal remeter a informação ao Conselho Superior da Magistratura (CSM) (Art. 156.º/5). Ora, uma interpelação a fazer pela Assembleia da República ao CSM será a certificação do número de participações recebidas, para serem apuradas as causas e os responsáveis pela lentidão da justiça, que poderão não recair nos juízes e nos procuradores. Daqui se conclui que, sem qualquer acrimónia, nem a auditoria interna, dentro do próprio sistema, tem capacidade para ser posta em marcha.
Em suma: a Justiça, porque é administrada em nome do Povo, não pode assentar em sete corporações, que vivem olhando para dentro do seu mundo, desligadas de qualquer responsabilidade ou acompanhamento político, administrativo ou cívico. Naturalmente, só a Assembleia da República poderá assumir tal desiderato e, com a sua legitimidade constitucional própria, também o Presidente da República não pode deixar de, uma vez mais, exercer uma magistratura de influência.
Não pudemos, nem queremos, chegar ao limite do Código do Processo Civil de 1876, que mandava descontar, para todos os efeitos, no tempo de serviço “… os dias durante os quais demoraram os processos além d'estes prazos” (Art. 100.º, 2), sendo de 30 dias o prazo geral para a prática do acto pelos juízes.
No entanto, a natureza meramente indicativa dos prazos para a prática de actos para os magistrados, apesar de ter sido temperada no CPC de 2013 (no já referido Art. 156.º/5), nem assim arrastou consigo a consequência, nem sequer a necessidade, de separar os que cumprem, na medida do possível, dos que não cumprem, na medida do intolerável.
Falemos, então, da Ordem dos Advogados (OA). Trata-se da única corporação estranha e exterior aos poderes, com o encargo constitucional e legal de defender o Estado de direito e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e colaborar com a administração da justiça. Entre outras prerrogativas que o Art. 3º. do Estatuto lhe atribui, estes três são matriciais. Cumpre, pois, indagar se a OA preenche os seus objectivos.
Ora, desde 2004 para cá, é ostensiva a desvalorização cívica, corporativa e política da advocacia, o que muito se imputa aos bastonatos que, desde então, têm imprimido a essa (minha) associação uma desvalorização no âmbito do mundo judiciário. As direcções da OA soçobraram perante o poder judicial e ajoelharam perante o poder político e não souberam empertigar-se na defesa dos três pilares estatuários que acima identifiquei.
Hoje, a OA deixou de ser uma realidade judiciária e forense e, provavelmente, nunca mais atingirá o prestígio que a levava a ombrear com as demais corporações, a ser respeitada e ouvida pelo poder político. Tudo isto, antes e depois de 25 de Abril.
Tenho muita mágoa. Tenho esperança numa jovem advocacia que retome a dignidade e o prestigio da advocacia portuguesa.