É preciso mais verdade
Quem afirma que aumentar o número de alunos em Medicina ajuda a aumentar o número de médicos especialistas demonstra um profundo desconhecimento sobre o assunto ou uma vontade pouco indisfarçável de enlear uma discussão que deveria ser séria e transparente.
O argumento da falta de médicos em Portugal tem sido profusamente utilizado para justificar a criação de novas escolas médicas ou para aumentar, de forma irresponsável, o numerus clausus de vagas para Medicina. É, alias, o argumento principal e recorrentemente utilizado por quem tem interesse direto na matéria, por alguns comentadores supostamente esclarecidos e pelos responsáveis do Ministério da Saúde (MS) e do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES).
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O argumento da falta de médicos em Portugal tem sido profusamente utilizado para justificar a criação de novas escolas médicas ou para aumentar, de forma irresponsável, o numerus clausus de vagas para Medicina. É, alias, o argumento principal e recorrentemente utilizado por quem tem interesse direto na matéria, por alguns comentadores supostamente esclarecidos e pelos responsáveis do Ministério da Saúde (MS) e do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES).
Este argumento simplicista expressa um total desconhecimento da realidade e, nalguns casos, alguma má-fé.
A bem da verdade, vale a pena desmistificar uma mentira que perdura e que, inclusivamente, serve para serem tomadas decisões que prejudicam gravemente o País.
Portugal tem 19.425 médicos especialistas a trabalhar no Serviço Nacional de Saúde, segundo o último balanço social mensal do MS, número ao qual acresce ainda 10.477 médicos internos que estão em formação da respetiva especialidade.
Anualmente, nestes últimos anos, os hospitais e centros de saúde têm tido a capacidade para abrir 1800 vagas para formação de médicos especialistas – aqueles que verdadeiramente fazem falta ao Serviço Nacional de Saúde e a todo o País, pois não há nenhuma instituição de saúde que possa afirmar que não tem falta de cirurgiões, internistas, pediatras, anestesiologistas, médicos de família e muitos outros médicos especialistas.
Para essas 1800 vagas de especialidade existe um concurso anual em que se candidatam entre 2200 a 2400 recém-diplomados em Medicina, esses mesmos, que entraram nas faculdades de Medicina e cujo número de estudantes o ministro Manuel Heitor teima, desnecessariamente, em pretender aumentar.
É fácil percebermos que ficarão excluídos mais de 400 recém-diplomados em medicina (2200-1800=400, só para não subsistir qualquer dúvida). Ficarão sem acesso a qualquer especialidade. Assim, é facilmente entendível que não serviu de nada aumentar o número de estudantes de Medicina, seja através da criação de novas faculdades ou seja pelo aumento do numerus clausus de vagas para Medicina. Até poderíamos duplicar ou triplicar o número de vagas para Medicina que continuaríamos a ter formação especializada somente para os mesmos 1800 médicos.
Por mais que se queira alterar a evidência, na circunstância atual não existe nenhuma relação direta entre o número de estudantes e o número de médicos especialistas. Mas este facto não parece incomodar minimamente o MCTES, que, sabe-se lá porquê, pretende que o País tenha ainda mais médicos sem especialidade. Tal conduta levará à desqualificação da Saúde e este não é um assunto que se possa aligeirar porque prejudica diretamente a prestação dos cuidados de saúde.
Não vejo, por exemplo, o mesmo esforço, a mesma intenção do MS em alterar as condições da formação médica especializada, nos serviços dos hospitais ou nas unidades de cuidados de saúde primários, para permitir aumentar e melhorar a capacidade formativa.
Não vejo o mesmo ímpeto em querer dotar as faculdades de Medicina de condições físicas adequadas e de um razoável rácio estudante-tutor.
Quem afirma que aumentar o número de alunos em Medicina ajuda a aumentar o número de médicos especialistas demonstra um profundo desconhecimento sobre o assunto ou uma vontade pouco indisfarçável de enlear uma discussão que deveria ser séria e transparente.
Já percebemos que as “fake news” não surgem só nas redes sociais mas, muitas vezes, da boca dos próprios governantes.
O País não pode ter como objetivo aumentar a quantidade de estudantes de Medicina. É uma medida inconsequente, inútil e, sobretudo, enganadora.
A aposta tem de ser colocada na melhoria das condições de formação nos internatos médicos, isto é, no momento em que o médico faz a sua aprendizagem com vista à especialização.
As instituições de saúde e os doentes precisam de médicos especialistas. E o País precisa de mais verdade e de menos distrações.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico