Celebrar o SNS
A pandemia, que o SNS soube enfrentar com a coragem e a disciplina de um guerreiro, deixou para trás milhões de consultas presenciais e episódios de urgência. Temos que assumir que houve decisões erradas.
Hoje é um dia de festa. Mas, desta vez, a celebração é diferente. Os 41 anos do SNS, com o País mergulhado na pandemia, são um momento de especial preocupação.
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Hoje é um dia de festa. Mas, desta vez, a celebração é diferente. Os 41 anos do SNS, com o País mergulhado na pandemia, são um momento de especial preocupação.
Todos sabemos as fraquezas e as ameaças que envolvem o serviço público, tantas as vezes que o objeto foi (e ainda é) estudado. Temos noção das forças e oportunidades que permanecem incompreensivelmente na reserva, adormecidas, aguardando pela iniciativa e coragem dos responsáveis políticos. Conquistámos o SNS, orgulhamo-nos dele, reconhecemos unanimemente a sua razão de ser, mas estamos a deixá-lo definhar, orçamento a orçamento, inverno atrás de inverno, não honrando a história das mulheres e dos homens que o construíram e dos profissionais de saúde que o fazem todos os dias.
O SNS foi convertido em “máquina de guerra”, deixámo-lo focado no combate à covid-19 e a afastar-se sub-repticiamente da sua obrigação constitucional de oferecer cobertura universal a todos os portugueses. Temos de o repetir: o serviço público não pode ser apenas a soma amalgamada de edifícios, equipamentos e tecnologias; sem os profissionais de saúde, o SNS perde a essência da sua existência; e só pode ser a resposta certa e justa às necessidades em saúde de todos os cidadãos. Tudo o resto apenas deve estar ao serviço deste objetivo nobre que é servir as pessoas.
A pandemia, que o SNS soube enfrentar com a coragem e a disciplina de um guerreiro, deixou para trás milhões de consultas presenciais e episódios de urgência, outros milhões de exames complementares de diagnóstico e terapêutica, muitos milhares de cirurgias e tratamentos oncológicos… Estamos agora, com grande dificuldade, a correr atrás do prejuízo. Isto quer dizer que, por decisão política, houve cidadãos que foram indevidamente secundarizados ou esquecidos, e que outros lhes terão passado à frente quando deviam ser tratados com igual prioridade. E quando se diz que a mortalidade cresceu 10% nos meses de pandemia, não sendo esta a causa da grande maioria dos óbitos, então temos de medir com rigor os efeitos daquele atropelo constitucional e assumir que houve decisões erradas. Sem isso não podemos corrigir nada a tempo de uma segunda vaga ou de outros desafios futuros.
Quando se exigem recursos com caráter de urgência – e sabe-se que a despesa per capita em saúde está em Portugal 1000 euros abaixo da média da OCDE, ou que a despesa pública em saúde no nosso País está em 5,9% do PIB quando na União Europeia a média é de 7,1% –, temos de acrescentar que esse investimento se destina à cobertura universal, que hoje é uma miragem. Esses recursos (humanos, tecnológicos, inovação...) devem destinar-se a dar aos portugueses (que pagaram antecipadamente, com os seus impostos, o SNS) os melhores cuidados, estando onde estiverem.
Quando se fala em retoma, é preciso recordar estas necessidades, reclamando uma atenção especial, um modelo renovado de serviço público ou mesmo de sistema de saúde, pois entre público, social e privado não devemos erguer muros que separem uma “saúde legítima” de uma “saúde bastarda”. Esse modelo está há muito desenhado, escalpelizado nos milhares de documentos que se foram amontoando nos corredores da indecisão política. E à vista de um sério prognóstico de falência por incapacidade de resposta em tempo clinicamente aceitável, temos de voltar aos projetos, selecioná-los e, com coragem, concretizá-los. O SNS precisa que as boas ideias, já estudadas, saiam da gaveta.
O SNS é por direito dos cidadãos, mais ou menos contribuintes, de qualquer grupo etário, nacionais ou vindos de fora, com graus diversos de literacia, diferentes necessidades e urgências. Não estamos a fazer-lhes qualquer favor. Quem presta cuidados não os distingue, não trata, apenas ou primeiro, aqueles que vieram ao seu encontro. Os cuidados existem para servir a todos, sem distinção e por igual: os que vão aos hospitais, aos centros de saúde, às farmácias, aos laboratórios, os que estão nos lares ou os que ficam em casa. Numa palavra: os que precisam, independentemente da sua condição.
Enquanto responsáveis de Ordens profissionais, reafirmamos, na passagem de mais um aniversário do SNS – conquista democrática que tem de ser preservada como nosso último tesouro –, que preferimos estar do lado das soluções, do futuro. Do lado dos cidadãos. Dos doentes. Zelando pela qualidade e saúde do SNS e do sistema de Saúde, em geral.
Os profissionais de saúde que representamos reconhecem um elogio ou um agradecimento. Mas não é isso que nos move. O que não abdicamos pelos nossos doentes são condições de trabalho que permitam continuar a salvar vidas e a servir com dignidade. Por dever e imperativo ético, continuaremos a colaborar e a contribuir para um serviço público mais eficiente e mais justo, apesar de exangue, e para um sistema de saúde inclusivo e integrado, que trate os portugueses como estes merecem.
Bastonários das ordens dos Farmacêuticos, Enfermeiros e Médicos
Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico