A incerteza das respostas certas
Antes da resposta certa vem a pergunta certa. E, antes desta, por vezes, a pergunta errada. Mais: às vezes, chega-se à resposta, outras vezes, não. Às vezes, não há a resposta final, inequívoca e imutável. É que, antes de estar certa, a resposta teve certamente as suas incertezas.
Há uns anos, já não sei precisar quando, tropecei nele numa Feira do Livro, em Lisboa. Era uma edição italiana, estava a ser vendido em segunda mão, tinha já alguma aspereza nas páginas, e um grafismo de 1964, que lhe dava um aspecto ainda mais viajado e sonhador. Comprei-o. Chama-se Il libro degli errori, o livro dos erros, em português, e é do escritor e pedagogo italiano Gianni Rodari.
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Há uns anos, já não sei precisar quando, tropecei nele numa Feira do Livro, em Lisboa. Era uma edição italiana, estava a ser vendido em segunda mão, tinha já alguma aspereza nas páginas, e um grafismo de 1964, que lhe dava um aspecto ainda mais viajado e sonhador. Comprei-o. Chama-se Il libro degli errori, o livro dos erros, em português, e é do escritor e pedagogo italiano Gianni Rodari.
Volta e meia, folheio-o para ler, por exemplo, o poema sobre o dia em que a água (acqua, no original) perdeu o q. A letra desapareceu da palavra e é uma desgraça: com uma água assim já não se consegue navegar, nem lavar a roupa, nem fazer girar as rodas dos moinhos. Nem sequer é potável, é uma água seca. É preciso avisar o prefeito, o presidente, ou, então, mais fácil, corrigir o erro.
Gianni Rodari, que venceu em 1970 o Prémio Hans Christian Andersen, tem todo um universo poético e filosófico à volta do erro noutros livros que escreveu. Na Gramática da Fantasia, onde nos apresenta, entre outras técnicas para inventar histórias, o binómio fantástico (o encontro entre duas palavras estranhas, como, por exemplo, cão e armário), também escreve sobre o erro criativo, defendendo que “o erro ortográfico, se bem considerado, pode dar lugar a toda a espécie de histórias cómicas e instrutivas” e, também, que “de um lapso pode nascer uma história”.
O autor preocupava-se mais com os erros do mundo do que com os erros ortográficos. “Os erros não estão nas palavras, mas nas coisas; é preciso corrigir os ditados, mas é preciso sobretudo corrigir o mundo”, dizia.
Não é só pedagogia o que está aqui. É também uma visão do mundo. Uma visão sobre o erro, sobre a falha ou o falhanço, sobre o defeito, sobre o desvio à norma, e sobre o processo criativo. Foi, aliás, Gianni Rodari quem também observou: “Os erros são necessários, tão úteis como pão e, muitas vezes, belos: por exemplo, a Torre de Pisa.”
O erro faz parte de nós, mas num mundo que sobrevaloriza o sucesso, tendemos, se possível, a varrê-lo para debaixo do tapete, a fingir que não aconteceu, a disfarçá-lo mais do que a corrigi-lo, e muito menos a dar-lhe, em certas situações, como na infância, o espaço em branco criativo que Gianni Rodari lhe deu. Já houve tempos em que os erros ortográficos valeram reguadas, sublinhados a vermelho; hoje, e entre adultos, os tropeções, erros e fracassos até podem ser exaltados, mas apenas quando ilustram narrativas de sucesso. Sem esse final feliz, perdem brilho.
Há inúmeros discursos motivacionais que citam a célebre frase de Samuel Beckett sobre o tentar de novo e falhar melhor (o que é, na melhor das hipóteses, um absurdo, para fazer jus ao autor), mas sempre como forma de se atingir o prometido sucesso, de se encerrar a história com o tal final feliz. Embora aparentemente seja um discurso que valoriza o tropeção como forma de aprendizagem, é preciso acrescentar outra camada à história: é que nem todas têm esse final feliz. Às vezes nem acabam sequer.
O sentido é mais ou menos o mesmo o de ensinar as crianças a pintarem direitinho dentro da folha A4 e pedir-lhes, anos mais tarde, que pensem, para usar também uma outra expressão já gasta, fora da caixa.
Volta e meia, lembro-me disto dos erros e das correcções, dos avanços que podem parecer recuos, da estrada, por vezes, com ziguezagues que é a do conhecimento e da criação, quando passo os olhos pelas redes sociais, quando escuto pequenas conversas quotidianas, e até quando me atraiçoo pela minha própria cabeça. A pandemia fez saltar alguns receios. Dia sim, dia não, ouço alguém, e certamente já repeti alguma frase do género, desapontado com a ciência, porque num dia se diz uma coisa, noutro dia, outra. Esquecendo-se, assim, que a ciência é feita disso também, de dúvida, de tentativa. E de fracasso até. E que é feita ainda de outros ingredientes algo escassos nos tempos que correm: tempo e, até, paciência.
É preciso tempo para chegar à resposta certa e é preciso paciência, perseverança, para esperar por essa resposta. Mais: antes da resposta certa vem a pergunta certa e, muitas vezes, antes da pergunta certa vem a pergunta errada. E para fazer perguntas é preciso imaginação. Às vezes, chega-se à resposta, outras vezes, não, embora vivamos nessa busca, nessa procura inesgotável. Mas, várias vezes, não há sucesso, não há, como num pronto-a-vestir, a resposta final, inequívoca e imutável. É que, antes de estar certa, a resposta teve certamente as suas incertezas.