Num momento pandémico no mundo, o vírus maior continua a ser o da indiferença
Quando vejo as imagens de gente como nós, em sofrimento escusado, penso se ainda somos humanos. Mória é o inferno que Dante Alighieri adivinhou há quase mil anos.
Aos seres humanos podem acontecer muitas coisas más ao longo da vida. Até nascer pode não ser bom se se nascer num lugar ou tempo que seja mau. Pode-se ter a “má sorte de não ser rico”, um eufemismo para a pobreza, ou de não ter o que comer, ou de não poder ir à escola. Pode-se viver num lugar sem condições de habitabilidade, não ter água ou não ter um teto. Pode ter-se a má sorte de ser uma minoria em tempo ou espaço onde não somos respeitados. Pode até ter-se cor em terra de gente que se julga incolor. Pode-se ser criança onde, ou quando, não se pode ser criança. Pode-se ser jovem quando se devia ser adulto. Pode-se ser mulher onde e quando só os homens podem. Podemos ter de fugir de um cataclismo, de um terramoto, de um ditador ou de uma guerra. Pode-se ter que atravessar um deserto ou um mar (ou ambos) com a vida nas mãos dos outros. Podemos ter que viver entre países, sem casa e sem lar, sem pátria e sem família. Pode-se acabar num campo de refugiados e passar fome e sede e frio e calor e medo. Podemos estar sozinhos no meio de uma multidão de gente como nós. Pode-se ser perseguido apenas por ter ideias (!!) ou opiniões (!!). Podemos ter desventuras ao longo da vida, todos e cada um pode, um dia, ser refugiado.
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Aos seres humanos podem acontecer muitas coisas más ao longo da vida. Até nascer pode não ser bom se se nascer num lugar ou tempo que seja mau. Pode-se ter a “má sorte de não ser rico”, um eufemismo para a pobreza, ou de não ter o que comer, ou de não poder ir à escola. Pode-se viver num lugar sem condições de habitabilidade, não ter água ou não ter um teto. Pode ter-se a má sorte de ser uma minoria em tempo ou espaço onde não somos respeitados. Pode até ter-se cor em terra de gente que se julga incolor. Pode-se ser criança onde, ou quando, não se pode ser criança. Pode-se ser jovem quando se devia ser adulto. Pode-se ser mulher onde e quando só os homens podem. Podemos ter de fugir de um cataclismo, de um terramoto, de um ditador ou de uma guerra. Pode-se ter que atravessar um deserto ou um mar (ou ambos) com a vida nas mãos dos outros. Podemos ter que viver entre países, sem casa e sem lar, sem pátria e sem família. Pode-se acabar num campo de refugiados e passar fome e sede e frio e calor e medo. Podemos estar sozinhos no meio de uma multidão de gente como nós. Pode-se ser perseguido apenas por ter ideias (!!) ou opiniões (!!). Podemos ter desventuras ao longo da vida, todos e cada um pode, um dia, ser refugiado.
Porém, quando olho para Mória, quando vejo as imagens de crianças sozinhas e de pais e avós de mãos vazias, quando se fala de tentativas de suicídio destas crianças após mais um princípio do fim que o fogo iniciou, fico a pensar se é justo que estes seres humanos tenham que sofrer todas estas adversidades numa só vida. Quando vejo as imagens de gente como nós, em sofrimento escusado, penso se ainda somos humanos. Mória é o inferno que Dante Alighieri adivinhou há quase mil anos.
Há uns meses atrás escrevi aqui um texto sugerindo que a Europa, pelo menos a União Europeia ou a Europa de Schengen ou quem sabe até só a Europa do Euro (que, afinal, Europas há muitas), fosse capaz de, solidariamente, criar uma “Operação Acolhida” – como o Brasil criou para os refugiados Venezuelanos. Nesta operação, na linha da frente, um consórcio entre estruturas do Estado Brasileiro e de Organizações das Nações Unidas presta assistência e acolhimento em vários núcleos criados para o efeito em cidades como Pacaraima, Boa Vista ou Manaus. Posteriormente a uma referenciação local, acolhimento inicial e a uma definição do estatuto legal de cada acolhido (i.é. requerente de asilo, sujeito a proteção humanitária ou candidato a uma migração legal), estes migrantes e refugiados são distribuídos, de forma voluntária, pelo território brasileiro. Esta mobilidade intra-Brasil é feita maioritariamente de forma independente, mas, em muitos casos (circa de 40.000 desde abril de 2018), é usado um mecanismo inovador – que chamaram de interiorização – que permite deslocar migrantes/refugiados para municípios onde a sua integração (laboral, habitacional, de saúde ou escolar) possa ser realizada de forma mais célere e efetiva.
Este mecanismo permite atenuar a pressão migratória junto das “portas de entrada” e partilhar o ónus de prestação de acolhimento entre os vários Estados que compõem a República Federativa do Brasil. Destaco, entre outros mecanismos usados, o recurso ao reagrupamento familiar ou reagrupamento por familiaridade (ou reagrupamento por apadrinhamento social), o emparelhamento laboral entre potencial empregador e potencial trabalhador (feito à distância), o emparelhamento escolar (acolher famílias onde há vagas para as crianças e jovens nas escolas) ou a oferta voluntária de acolhimento feita pelos municípios brasileiros. Estes mecanismos permitem acelerar a mobilidade geográfica e retirar famílias inteiras de campos de refugiados nas zonas de fronteira. Não é uma operação perfeita, longe disso, mas contém, seguramente, um manual de boas práticas que podem ser exportadas para outros lugares do mundo.
O lema da “Operação Acolhida” brasileira, “Acolhimento, Abrigamento, Interiorização”, contraria o nosso imaginário de um Brasil com portas fechadas e muros altos no que respeita às migrações e, afinal, a nós Europeus, deixa-nos algum “amargo de boca” quanto à nossa incapacidade de “acolher, abrigar, distribuir pelos Estados Europeus” o peso de uma tragédia como é a dos migrantes/refugiados que tentam fugir da miséria, da guerra e da fome e entram numa das regiões mais ricas do mundo pelas suas portas mediterrânicas. Nos últimos anos, esta tragédia tem, aqui na Europa, muitos momentos marcantes como as pateras que se dirigem a Espanha, os barcos que chegam a Lampedusa, a Malta, ao Sul de Itália ou às ilhas gregas, as filas de caminhantes que atravessam várias fronteiras na Europa interior na tentativa de obter segurança e um refúgio. Temos o ónus de milhares de cadáveres num mediterrâneo que já uniu, mas, agora, só separa. Temos campos de refugiados famosos como os da Grécia ou os de Calais. Temos crianças que emergem mortas nas nossas praias e temos, agora, uma sequência de caos, fogo, caos, que retiram aos que já nada tinham tudo o que lhes restava.
Num momento pandémico no mundo, o vírus maior continua a ser o da indiferença. Numa Europa rica o suficiente para desperdiçar alimentos, consumir o mundo das gerações futuras em embalagens de uso único, usar tecnologias de ponta para entretenimento e ócio. Numa Europa rica o suficiente para cuidar dos mercados financeiros e amparar economias que se confinaram por razões de saúde pública. Numa Europa com intelectuais maiores, quadros superiores das maiores empresas globais, com forças armadas e forças civis capacitadas para atuarem planetariamente (e algumas até mais além). Numa Europa com 500 milhões de Europeus e um vasto território que atravessa vários paralelos e meridianos.
Nesta Europa, não é possível que não nos consigamos organizar para “Acolher, Abrigar e Distribuir Internamente” os refugiados que estão parqueados na fronteira sul. Apelo aqui diretamente aos dirigentes máximos da União Europeia (no Conselho, na Comissão, no Parlamento) para que não deixem morrer a Esperança. Saibamos organizar uma “Operação Acolhida” na Europa. Construamos com o muito que já aprendemos (e que as Instituições Internacionais, as ONG’s, a Academia podem sintetizar) um modelo europeu de acolhimento que seja referência para o mundo e para as gerações futuras. Uma parte do futuro da Europa passa por aqui. É esta vacina social, humanista e progressista, que será capaz de combater o vírus da indiferença e fazer-nos voltar a ser humanos.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico