Marisa Matias afasta crise política, mas estranha silêncio do PS nas presidenciais

A candidata à Presidência da República não acredita que estejamos a viver um real cenário de instabilidade parlamentar. Quanto ao silêncio do PS sobre as presidenciais, Marisa Matias torce o nariz à “demissão” do Largo do Rato.

Foto
Marisa Matias apresentou oficialmente a sua candidatura esta quarta-feira, no Largo do Carmo, em Lisboa Daniel Rocha

Num momento em que “é preciso afirmar a esquerda” o silêncio do partido no Governo incomoda a candidata dos antigos parceiros da coligação. Questionada sobre a existência de uma crise política, a eurodeputada afasta o cenário de instabilidade e insiste na discussão de soluções que respondam “aos problemas concretos das pessoas”. Em entrevista ao programa Hora da Verdade, do PÚBLICO e da Rádio Renascença (que é emitido esta quinta-feira às 13h), Marisa Matias falou daquela que deve ser a resposta da esquerda ao populismo de direita e criticou a falta de solidariedade da União Europeia.

Como viu o empurrão dado por António Costa a Marcelo Rebelo de Sousa em Maio deste ano? Foi uma traição aos parceiros à esquerda?
Não comento as opções e razões. Acho que, num momento em que é preciso afirmar a esquerda, é estranho essa demissão do PS. Mas é até onde vou. Essa é uma decisão interna. 

Que erros têm sido cometidos pelo actual Presidente? Já falou de coisas positivas.
Têm que ver com a visão que temos de sociedade, do respeito pela Constituição, do respeito pela protecção da democracia, que é distinta. Não estou a dizer que não somos os dois democratas, não quero que haja esse equívoco. Mas nos três eixos fundamentais de resposta à crise, creio que o Presidente não esteve do lado que era mais necessário. Na questão dos recursos necessários para investir em salários e pensões e para proteger os mais velhos, por exemplo. Vemos que é uma das áreas na qual é preciso fazer um investimento e reestruturação completa da nossa sociedade. Não é possível imaginar que, para quem é mais velho, ir para um lar seja uma ameaça e não uma protecção. Também em relação à protecção no trabalho há alguma omissão. É uma área em que o Presidente devia ter tido uma acção muito mais consolidada.

Acha, como disse Jerónimo de Sousa no final da Festa do Avante!, que Marcelo pode querer promover uma aproximação entre o PSD e o PS e favorecer políticas de direita?
Não falo de futurologia. Pode haver alguma intenção, mas não estou dentro da cabeça das pessoas para saber se será um mandato diferente ou não. Nem preciso disso. Basta uma avaliação deste mandato para perceber que há espaço para visões, alternativas e respostas diferentes.

Temos vivido sob a ameaça de crise política que o Presidente diz que não pode existir. Acredita que vamos viver uma pré-campanha neste ambiente de crise política? E como se resolve?
As crises políticas evitam-se, não se antecipam. Procuram-se soluções. É precisamente o papel de um presidente da República ajudar a contribuir para soluções.

Como é que esta se evita? Com um acordo entre o BE e o Governo para o Orçamento do Estado para 2021? 
Não vou falar disso.

Mas é importante saber o que defende em termos de estabilidade da legislatura. O primeiro-ministro, no debate do estado da nação, falou num acordo de legislatura escrito. É possível e desejável?
Acho que a estabilidade da legislatura não está em causa. Não creio, seja qual for o desfecho, que estejamos numa situação de uma instabilidade ou não legitimidade. O Governo continuará em perfeitas condições para exercer o seu mandato.

Quais são os desafios para esta campanha? Como espera chegar aos eleitores num contexto de pandemia? 
Não vou deixar de ouvir pessoas e de contactar com as pessoas, ainda que em contextos muito diferentes do que aqueles que conhecemos até agora. Toda a gente tem de se adaptar aos novos tempos e as actividades partidárias não serão imunes a isso. Terá de ser uma campanha com contornos muito diferentes, sem com isso eliminar a proximidade social. Distanciamento físico não é distanciamento social. É muito diferente. A proximidade tem de se manter. Será um desafio para toda a gente, para mim também.

Foto
Marisa Matias apresentou-se esta quarta-feira para “dar voz à gente sem medo” Daniel Rocha

O crescimento de movimentos populistas na União Europeia (UE) é uma das preocupações que trará para a campanha?
Claro que sim. É uma preocupação em todo o lado. Na UE e fora dela. Mas o que a história recente nos mostra é que, de cada vez que a esquerda se distraiu e foi atrás de resposta ao populismo, em vez de trazer respostas concretas para a vida das pessoas, perdeu. Não podemos abdicar de maneira nenhuma de continuar a apresentar essas soluções por muitas distracções que tentem pôr no caminho. 

Responder demasiado pode fazer crescer o populismo?
Não nos ajuda em nada retirar do centro da política e da discussão política aquilo que são os problemas concretos das pessoas e das soluções que precisamos para encontrar. Muitas das vezes as distracções são trazidas para desviar dos problemas em concreto. A resposta é com política e não andar atrás de uma agenda que não diz nada às pessoas.

Em 2019, na véspera das eleições europeias, dizia que a UE estava minada de corrupção. Será também um tema em que espera focar a sua campanha?
Trabalhei toda a minha vida política no Parlamento Europeu em áreas e domínios em que o combate à corrupção é um elemento central. É um tema que não sairá da mesa enquanto tivermos problemas dentro das instituições e as portas giratórias entre o sector privado, governo e instituições. Mas entendo esse como um combate transversal.

Na próxima semana é o debate do estado da União. Se pudesse fazer o discurso num minuto e meio como é que diria?
É um estado periclitante e difícil. Um braço-de-ferro entre governos, em que resta pouca solidariedade e cooperação. A prova disso foi a discussão para o Fundo de Recuperação, muito aquém do que seria necessário em termos de montante e na forma como foi apresentado. Só confirma a desigualdade na UE. Para se aprovar um fundo de recuperação, teve de se aumentar rebates para os ditos “países frugais”. Estamos a assistir a uma UE que ainda não conseguiu fugir a um colete-de-forças que nos prende cada vez mais a um projecto que teima em não responder à vida das pessoas. Precisamos de rever os tratados, de uma verdadeira política de combate às alterações climáticas e de cooperação; e [há] áreas em que ainda não tocámos, como as transacções financeiras e o fim de offshores. A UE está num momento crítico e é o próprio projecto europeu que está em causa. Não considero que [o projecto europeu] possa continuar tão arbitrário e injusto. 

Mas ainda consegue olhar com esperança para esse projecto?
Sou uma optimista trágica [risos] e acho sempre que as coisas podem ser melhores.