Paremos de matar a amizade

O amigo entende o outro a quilómetros de distância, pode até parecer magia, mas é simplesmente empatia. O contrato não é instrumento da amizade. Não há cauções ou fianças. É-se amigo e ponto. Assumindo-se, à partida, tudo o que há de bom ou ruim.

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Amizade não combina com ónus de provar. Não é afeita a modismos, não é amante de comodismos. Não admite a violência, mas também não persiste pela conveniência. A amizade tem que ver com o destino da espontaneidade, do que há de mais humano e transparente em nós. É bem verdade que a história construída fortalece, mas os amigos já se reconhecem amigos naquele primeiro instante.

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Amizade não combina com ónus de provar. Não é afeita a modismos, não é amante de comodismos. Não admite a violência, mas também não persiste pela conveniência. A amizade tem que ver com o destino da espontaneidade, do que há de mais humano e transparente em nós. É bem verdade que a história construída fortalece, mas os amigos já se reconhecem amigos naquele primeiro instante.

Todavia, o que ainda nos falta para entendermos que amizade não é sentimento a ser posto à prova? Impossível usufruir o mais sublime de uma relação despretensiosa e, ao mesmo tempo, quase familiar, quando se tem constantemente que justificar a razão das coisas. O amigo entende o outro a quilómetros de distância, pode até parecer magia, mas é simplesmente empatia. O mais aflorado estado de empatia (isto é, conectar-se ao pathos, ao sofrimento do outro) a que se pode chegar. Contraprestações não fazem parte do arsenal do amigo. O contrato não é instrumento da amizade. Não há cauções ou fianças. É-se amigo e ponto. Assumindo-se, à partida, tudo o que há de bom ou ruim no porvir. Por um acto de vontade perfeitamente acabado, pleno, mas também sem qualquer formalidade ou fundamento racional.

É preciso parar de matar a amizade. Já assassinamos e sepultamos os seus parentes num cemitério de palavras mortas, em tumbas de relações tortas. Quem não se lembra de como era o finado amor? Pois é, está morto, decomposto. À espera, talvez, de sua ressurreição numa versão actualizada, menos vazia de sentido. Ainda há tempo de não cometermos “amizicídio”, bastando-nos rever e separar o joio do trigo. E, acreditem, não é lá muito difícil saber quem merece participar da colheita, quem é a erva daninha que mata a amizade.

Acordemos para a conveniência e o oportunismo — são dois sintomas que apontam para um diagnóstico não muito satisfatório. Reparemos naqueles que se vão quando as ambições próprias já foram (cor)respondidas; naqueles que se lembram do outro apenas em datas comemorativas, dizendo o mesmo conjunto de palavras inócuas de sempre; naqueles que só vêem na relação o utilitarismo e que, por isso, se afeiçoam não pelo outro, mas pelo que podem obter de mais-valia dele. Esses sabem tanto sobre amizade, quanto sabem sobre empatia e amor: nada.

Tão ensimesmados que são, nunca conseguem conectar-se verdadeiramente ao outro. Vestem-se de bons ouvintes, mas o que querem é a voz do outro. Mostram caminhos, mas apenas aqueles que já não lhe interessam mais ou que, cedo ou tarde, farão o outro infeliz, fazendo-o crer que o fracasso é sua única e exclusiva culpa. Brincam com o outro, como as orcas fazem com as focas no oceano. Aquelas fazem-se de amigas, jogam e nadam com estas por entre as ondas. Quando já totalmente entregues aos cuidados das orcas, as focas transformam-se no seu alimento nutritivo. É a contraprestação por todo o momento de diversão. Portanto, quando uma pessoa passa a ser o sacrifício da relação, quando a brincadeira acaba no sangue da foca e na barriga cheia da orca, já não restam sequer vestígios de amizade.

A amizade não vê o outro como um veículo seu. Ela quer acompanhar a viagem, mas pelo simples prazer de estar ao lado, no trajecto. Não quer atingir um destino final para, então, fechar a porta quando o objectivo da boleia acabar. Amizade não tem pressa, é feita de extensas e alongadas conversas. Pode haver algum hiato de tempo, mas o reencontro é implacável. Volta-se exactamente àquele último momento da presença. A verdade é que não há ausência que dure para sempre na amizade. É como se o tempo da amizade ficasse suspenso no ar e bastasse um único “olá”, para voltar com toda a gravidade para o estado anterior. Assim, tempo perdido desconhece os amigos. Amigos trabalham sempre com tempo presente e encontrado. Deixam todos os enfeites da linguagem de lado e abrem tudo o que há de mais banal de suas vidas com palavras simples, pois a amizade não é exigente.

A distância e o tempo suportam quando se trata, de facto, de amizade. No entanto, o afastamento cínico pelo simples facto de ver a recompensa conquistada pelo que já se viveu não se confunde com a resiliência desse sentimento. Fazer o outro sofrer pela ausência premeditada é um indício negativo. Há um quê maquiavélico em tentar obter ganhos ou manter relações por mero oportunismo. Afinal, amizade não é negócio, não é contrato, não é encargo, não é vontade formal. Por tudo isso, paremos de matar a amizade enquanto é tempo, pois ela já está cansada das inúmeras e continuadas tentativas de “amizicídio!”