A regulação das rendas no setor de arrendamento privado
Deverá proceder-se à introdução de tetos máximos no caso das novas rendas, em função de critérios como a localização, tamanho e idade dos edifícios.
No atual período de crise epidemiológica, em que a covid-19 veio criar um estado de exceção que deu ao governo novos poderes para intervir em diversas áreas da economia, ganha relevância relançar o debate sobre o papel da regulação do mercado das rendas no setor de arrendamento privado.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
No atual período de crise epidemiológica, em que a covid-19 veio criar um estado de exceção que deu ao governo novos poderes para intervir em diversas áreas da economia, ganha relevância relançar o debate sobre o papel da regulação do mercado das rendas no setor de arrendamento privado.
Num contexto de aumento continuado dos preços da habitação e dos valores das rendas, este é, de resto, um debate que precede a pandemia, e que, previsivelmente, será retomado quando os sinais de recuperação do turismo se fizerem sentir ou, num epílogo negativo, caso se agudizem os sinais da crise económica.
Porque a crise de habitação acessível às classes média e baixa não é um fenómeno exclusivo das cidades portuguesas (Lisboa, Porto, e também várias cidades médias e algumas cidades algarvias de menor dimensão), mas é comparável com a que se tem observado noutras cidades europeias, vale a pena olhar para esses contextos e analisar qual tem sido a posição dos governos desses países ou cidades em relação à regulação das rendas habitacionais e quais os efeitos dessas políticas no mercado de habitação, e, em particular, no do arrendamento privado.
Comece-se, pois, por fazer uma distinção básica entre a chamada primeira geração do controlo das rendas e as gerações que se lhe seguiram, sendo que o período temporal associado às últimas variou substancialmente de país para país. A primeira significou uma regulação rígida (congelamento nominal das rendas) adotada num período de guerra e pós-guerra caraterizado por uma gritante crise habitacional e económica. As segunda e terceira gerações de controlo das rendas foram mais brandas e revelaram uma crescente sofisticação no modo da regulação do seu aumento, procurando diminuir a pressão no mercado de arrendamento privado e garantir uma maior estabilidade dos contratos para os inquilinos, salvaguardando também um retorno aceitável para os senhorios.
De um modo geral, verificou-se que os países que mantiveram uma regulação mais estável exibem hoje um mercado de arrendamento privado de dimensão relativa superior e com um espectro mais diversificado de inquilinos, como é o caso da Alemanha ou da Áustria. Contudo, as decisões políticas de alienação de habitação social no passado têm-se repercutido numa crescente desregulação e aumento dos valores das rendas.
Num dos países europeus com uma maior presença relativa do mercado de arrendamento, equivalente a 40% do stock total de habitação – a Alemanha –, o Governo Federal propôs a limitação dos aumentos de renda nos chamados “mercados de habitação sobrecarregados”.
O Parlamento Federal aprovou a medida em 2015 e os governos dos 16 estados federais ficaram responsáveis por definir e aprovar uma tabela de referência para regular o valor das rendas para os novos contratos de arrendamento, que deverá ser implementada até ao final de 2020. Os critérios para o cálculo das rendas são definidos por cada estado, tendo em conta fatores como o ano de construção do edifício, a sua localização e características.
O governo da cidade de Berlim, cidade onde 85% dos residentes vivem num alojamento arrendado, decidiu avançar com o congelamento do valor das rendas por cinco anos, impondo limites máximos às novas rendas baseados na idade e qualidade dos edifícios/imóveis, e na sua localização e tamanho. No caso das rendas acima do valor de referência (para a mesma localização, tipo e tamanho da habitação), os inquilinos podem solicitar uma redução. O governo estima que existam, pelo menos, 340 mil inquilinos com condições para se candidatarem a uma redução do valor da renda, e que esta poderá ser num número significativo de casos superior a 40%. Enquanto os economistas liberais descrevem esta proposta como uma ideia radical, que se aventura a ter efeitos contraproducentes na qualidade e quantidade do setor, o governo argumenta que esta é uma reação apropriada para uma situação habitacional traumática.
Nos países ou regiões onde o setor de arrendamento privado foi regulado de uma forma rígida nos anos 1980, como a Inglaterra ou Portugal, tem-se observado uma tendência para a desregulação e liberalização dos regimes de arrendamento.
A implementação do Housing Act de 1988, que desregulou as rendas e reduziu a segurança de todos os novos contratos a partir de 1989, na Inglaterra repercutiu-se numa expansão do setor de arrendamento privado naquela região do Reino Unido, que aumentou de 9% do total do stock habitacional em 1991, para 16% em 2010 e 20% em 2017.
A significativa expansão do setor de arrendamento privado na Inglaterra foi particularmente evidente entre 2000 e 2006 quando os proprietários com imóveis sem encargos ou outros ónus passaram a ter acesso a créditos hipotecários, com condições favoráveis, para a compra de habitação para arrendamento (right to rent). Contudo, esta possibilidade de financiamento, associada à expansão do mercado internacional de capitais, levou a um aumento desmesurado dos valores de habitação, dificultando o acesso ao mercado de compra de habitação, sobretudo por parte dos jovens e famílias com menores rendimentos. Em áreas de grande procura (por exemplo, Londres ou Cambridge), porque a renda é livremente fixada pelas partes, os contratos são de curta de duração (de 6 meses a 1 ano) e existe uma fácil cessação dos contratos (para conveniência do senhorio), tem-se observado uma tendência inflacionista no valor das rendas, o que origina uma sobrecarga nos encargos tanto das famílias como do estado central e local, que suporta os subsídios à renda.
Gostaria de terminar regressando ao caso português, para comentar a resposta do primeiro-ministro António Costa, dada numa entrevista em que descreveu como “muito sensível” a situação das rendas em Lisboa, relativamente à solução de congelamento das rendas por cinco anos adotada por Berlim: “Já passámos por esta experiência de congelar as rendas durante 40 anos, e é uma solução muito má para a preservação e renovação da cidade.”
Em relação a esta afirmação é importante distinguir o congelamento de rendas com valores muito reduzidos (que, de resto, se mantêm ainda hoje em Portugal no caso dos contratos vinculísticos celebrados antes de 1990, com inquilinos com idade igual ou superior a 65 anos, deficiência com grau de incapacidade superior a 60% e/ou carência económica) da definição de tetos ao valor máximo no caso das novas rendas em função da localização, idade e qualidade dos edifícios/imóveis.
O congelamento das rendas baixas penaliza, efetivamente, senhorios e inquilinos, porque desincentiva o investimento na requalificação dos imóveis e desencoraja a mobilidade no mercado de habitação. Deve, por isso, implementar-se, quanto antes, a atribuição de subsídios de apoio à renda no caso dos inquilinos com provada carência económica, como, de resto, está previsto na lei. Mas, simultaneamente, deverá proceder-se à introdução de tetos máximos no caso das novas rendas, em função de critérios como a localização, tamanho e idade dos edifícios/imóveis, com o objetivo de promover a convergência de valores entre as rendas antigas e as recentes e um melhor equilíbrio entre os interesses dos senhorios e dos inquilinos.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico