Covid-19 e fogo florestal
Sabemos já o suficiente para substituir a analogia oceânica das “ondas” por outra melhor que nos é muito próxima: um incêndio florestal com reacendimentos.
Como não tínhamos qualquer experiência anterior com uma pandemia mundial quando o SARS-CoV-2, o vírus que causa a covid-19, se começou a espalhar, os especialistas em saúde pública tinham somente a sua experiência com as pandemias de gripe (influenza) para formatar as suas previsões. Essas pandemias são frequentemente descritas em termos de “ondas” sucessivas e “depressões” intervaladas. Agora sabemos já o suficiente para substituir a analogia oceânica por outra melhor que nos é muito próxima: um incêndio florestal com reacendimentos.
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Como não tínhamos qualquer experiência anterior com uma pandemia mundial quando o SARS-CoV-2, o vírus que causa a covid-19, se começou a espalhar, os especialistas em saúde pública tinham somente a sua experiência com as pandemias de gripe (influenza) para formatar as suas previsões. Essas pandemias são frequentemente descritas em termos de “ondas” sucessivas e “depressões” intervaladas. Agora sabemos já o suficiente para substituir a analogia oceânica por outra melhor que nos é muito próxima: um incêndio florestal com reacendimentos.
Tal como um incêndio florestal, o vírus busca implacavelmente combustível (hospedeiros humanos), devastando algumas áreas enquanto poupa outras. Continuará a espalhar-se até atingirmos imunidade de grupo – e só quando 30 a 70% da população desenvolver anticorpos protetores poderemos finalmente retardar significativamente a transmissão. Alcançaremos a imunidade coletiva através de infeção generalizada ou por uma vacina eficaz e amplamente disponível. Nenhuma conversa política momentânea poderá mudar a dura realidade.
Já temos evidências convincentes de que SARS-CoV-2 não é afetado pela sazonalidade ou clima regional; espalha-se pelo contato inter-humano, sendo naturalmente mais fácil em áreas de alta densidade populacional. Ainda não sabemos se a imunidade é permanente ou de curta duração. Também não sabemos se uma vacina, se e quando a desenvolvermos, será um sucesso certeiro, como as vacinas para poliomielite ou sarampo, ou mais uma esperança de acerto com o agente, como a vacina contra a gripe sazonal e dada anualmente ou de três em três meses. Esperamos que os esforços de desenvolvimento de vacinas sejam eficazes, mas a esperança não é uma estratégia. Como o HIV, o SARS-CoV-2 veio para ficar e é esse realismo que deve informar a nossa resposta estratégica.
Estudos de pandemias anteriores, guerras e outros momentos de intenso stress nacional ou global mostram que as pessoas reagem com mais calma e eficácia quando a liderança lhes diz a verdade, mesmo que essa verdade seja dura ou assustadora. Se não temos respostas, devemos dizer o que se está a fazer para saber mais. Até agora, temos visto demasiado a abordagem oposta: mensagens com alvos móveis que costumam ser cientificamente erróneas, irracionalmente otimistas ou perversamente pessimistas, que deixam o público numa confusão desesperada sobre em quem e no que deve acreditar, sendo a ciência a primeira vítima. Devemos concentrar a nossa mensagem em factos científicos.
Nos próximos meses, a morbidade e mortalidade dependerão muito de a quanto combustível o incêndio florestal covid-19 terá acesso. Embora um bloqueio completo ao estilo Wuhan seja indesejável em democracia, precisamos de perder o pudor político nos locais em que os casos são perigosamente crescentes, suspendendo todos os serviços, exceto os estritamente essenciais e utilizando toda a tecnologia disponível para reduzir a transmissão a um nível gerível. Este equilíbrio é extremamente delicado, uma vez que tantas são as funções necessárias para manter a sociedade em funcionamento e facilmente se ultrapassa a linha de intrusão na vida privada. No entanto, também já sabemos que áreas que sofreram restrições rígidas como alguns países da Europa e da Ásia e Nova Iorque mostraram que podemos reduzir os números mortais e trazer a economia de volta num ambiente mais seguro.
Infelizmente, alguns países como os EUA e o Brasil têm sido otimistas e arrogantes: aos primeiros sinais de eficácia contra a covid-19, concluem que estão “superando o obstáculo”, mesmo quando a contagem de casos ultrapassa os 20.000 por dia, como nos EUA.
Devemos reduzir a taxa de infeção a um nível em que os resultados dos testes sejam rápidos o suficiente para que o rastreamento possa realmente identificar os contatos a tempo de interromper a transmissão. O nível que precisamos atingir é de cerca de dois casos de SARS-CoV-2 por dia para cada 100.000 habitantes, para que a resposta seja adequada.
O fogo está aí para arder e todos os meios disponíveis devem estar atentos para socorrer as pessoas, a economia e o bem-estar social que atingimos. Sabemos que os bloqueios causam grandes dores económicas e sociais, e devemos estar preparados para continuar cuidando daqueles que sofrem com o resultado da pandemia, qualquer que seja o preço. Não existem respostas fáceis e infalíveis, e mesmo nações que tiveram sucesso inicial em contenção estão enfrentando uma nova expansão à medida que as suas economias reabrem e existem “reacendimentos”. Mas este vai ser o nosso novo viver nos próximos anos.
Mas, de uma coisa, julgo ter a certeza: o custo de não agir de forma expedita e assertiva excederá em muito o custo de estar no campo todo, incluindo o já ardido, com todas as forças preparadas e utilizando todos os meios disponíveis. Porque os focos de incêndio se vão repetir de forma contínua. E temos de estar preparados para apagar os pequenos reacendimentos tal como uma nova frente de fogo. E primar pela eficácia, porque podemos não ter a sorte de ter chances sucessivas.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico