Três palhaços entram numa sala sem janelas e o que se segue não é uma piada

Palhaço Velho, Precisa-se, que se estreia esta quinta-feira em Coimbra, marca o regresso da Escola da Noite aos textos do dramaturgo Matéi Visniec.

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Os palhaços de Matéi Visniec têm pouco de engraçado. Ultrapassando a mera constatação de estarmos perante figuras que, logo à partida, induzem uma reacção jocosa, talvez a circunstância convide pouco ao riso. FilippoNicollo e Pepinno respondem ao anúncio Palhaço Velho, Precisa-se, mote que acaba por servir de título à peça que a companhia Escola da Noite estreia esta quinta-feira no Teatro da Cerca de São Bernardo, em Coimbra. No fundo, vêm para um casting, uma entrevista para um pequeno trabalho que lhes há-de atenuar a miséria. Os três palhaços estão numa sala sem janelas e cumprem o requisito fundamental: são velhos e procuram um emprego. Cada um veste um fato alugado e traz a sua mala lotada com provas da antiga glória e truques que, ao longo das pouco menos de duas horas de peça, hão-de exercitar. 

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Os palhaços de Matéi Visniec têm pouco de engraçado. Ultrapassando a mera constatação de estarmos perante figuras que, logo à partida, induzem uma reacção jocosa, talvez a circunstância convide pouco ao riso. FilippoNicollo e Pepinno respondem ao anúncio Palhaço Velho, Precisa-se, mote que acaba por servir de título à peça que a companhia Escola da Noite estreia esta quinta-feira no Teatro da Cerca de São Bernardo, em Coimbra. No fundo, vêm para um casting, uma entrevista para um pequeno trabalho que lhes há-de atenuar a miséria. Os três palhaços estão numa sala sem janelas e cumprem o requisito fundamental: são velhos e procuram um emprego. Cada um veste um fato alugado e traz a sua mala lotada com provas da antiga glória e truques que, ao longo das pouco menos de duas horas de peça, hão-de exercitar. 

“Aparentemente isto é uma comédia, e é o tom de comédia que vai levando o espectador”, começa por dizer o encenador da peça, António Augusto Barros. “Eu fico com dúvidas se é uma comédia trágica ou uma tragédia em tom cómico, e este tipo de indefinição interessa-me muito”, acrescenta. 

Matéi Visniec, poeta, filósofo de formação, jornalista de profissão (na Radio France Internationale) e dramaturgo para o caso que interessa, escreveu Palhaço Velho, Precisa-se em 1986, pouco antes de deixar a Roménia de Ceausescu, quando o regime entrava nos anos de estertor. Encontrou a sua casa em Paris e o reconhecimento em Avignon. Em Portugal, a Escola da Noite é uma das várias companhias que já trabalharam sobre textos seus. Fê-lo em 2014 com Da Sensação de Elasticidade Quando se Marcha Sobre Cadáveres, e surgiu a oportunidade de voltar fazê-lo agora.

Os planos até eram outros, reconhece António Augusto Barros, mas a pandemia obrigou a repensar tudo. A Escola da Noite estava a organizar um curso a partir do qual nasceriam peças, permitindo trabalhos com um elenco mais expressivo, mesclando actores da casa e alunos. Depois do confinamento, com o curso cancelado, a alternativa foi pegar num texto que pressupusesse menos pessoas em palco. As circunstâncias conduziram o encenador, que é também director artístico da companhia, a recuperar o texto de Visniec, autor que lhe foi dado a conhecer pelo encenador brasileiro Márcio Meirelles, recorda. 

O cenário desenhado por João Mendes RibeiroLuisa Bebiano é minimalista. Há três paredes brancas e, no meio delas, o que parece ser uma porta. Enquanto aguardam, os palhaços batem à porta, discutem o rumo da sua arte, o seu percurso, ouvem passos, criam expectativas. Entretanto talvez sejam seis horas. “Eles”, que nunca sabemos quem são, disseram que vinham às seis horas. 

De cada vez que se escreve sobre Palhaço Velho, Precisa-se, que em Coimbra estará em cena de quinta-feira a domingo até 4 de Outubro, Samuel Beckett e o seu À Espera de Godot surgem como termo de comparação. A analogia é tentadora, pois, na peça do dramaturgo irlandês, Vladimir e Estragon aguardam por aquele que não se sabe bem quem é nem se, de facto, chegará. O Godot de NicolloPepinno e Filippo são as seis horas e a presumível entrevista de emprego pela qual esperam enquanto trocam duas de treta ou demonstram as capacidades já emperradas pela idade. 

“Sempre achei o número do Nicollo muito extenso na peça, depois vim a perceber que tem todo o sentido. Não é um número qualquer: ele, no fundo, faz a sua vida de desgraçado, um bocadinho à maneira do Estragon”, refere António Augusto Barros. No fim, o velho palhaço deita-se encharcado e faminto.

“A peça tem como pano de fundo o desemprego, a velhice, o fim da vida, a morte antes da morte, que é uma coisa que me impressiona muito”, refere o encenador. Ao empurrar para o desemprego prolongado pessoas que estão perto dos 50 anos, “a sociedade desperdiça uma parte do que tem de melhor, que é a acumulação de experiência e a oportunidade de transmitir coisas”, considera António Augusto Barros. Palhaço Velho, Precisa-seque na aparência é uma comédia, toca também nesse ponto. Os palhaços de Matéi Visniec têm pouco de engraçado.