Vicente, um espírito livre
Se o PÚBLICO contribuiu decisivamente para mudar a imprensa e elevar o debate público à custa de uma equipa magnífica de directores, de jornalistas talentosos e estagiários ávidos de mudança, Vicente foi o chefe que tornou tudo possível.
Há uma história que o actual director do PÚBLICO deve contar sobre o primeiro director do PÚBLICO – porque diz muito não só sobre a sua personalidade como sobre a cultura de liberdade que instituiu no nosso jornal. Em 1994, logo depois da publicação do célebre editorial “Geração rasca?”, Vicente Jorge Silva foi ao Porto receber um prémio de jornalismo. Na redacção, dois jovens jornalistas, quem assina este texto e o Daniel Deusdado, confrontaram-no com a tese exposta nesse editorial. Disseram-lhe que estava a ser tão conservador como os que se indignaram no Maio de 68. Que caíra nos vícios dos conflitos de gerações. Vicente ouviu, discordou e acabou dizendo-nos: “Se é assim que pensam, escrevam-no.”
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Há uma história que o actual director do PÚBLICO deve contar sobre o primeiro director do PÚBLICO – porque diz muito não só sobre a sua personalidade como sobre a cultura de liberdade que instituiu no nosso jornal. Em 1994, logo depois da publicação do célebre editorial “Geração rasca?”, Vicente Jorge Silva foi ao Porto receber um prémio de jornalismo. Na redacção, dois jovens jornalistas, quem assina este texto e o Daniel Deusdado, confrontaram-no com a tese exposta nesse editorial. Disseram-lhe que estava a ser tão conservador como os que se indignaram no Maio de 68. Que caíra nos vícios dos conflitos de gerações. Vicente ouviu, discordou e acabou dizendo-nos: “Se é assim que pensam, escrevam-no.”
Vicente Jorge Silva, que esta terça-feira nos deixou, era imaginativo, rebelde, sensível ou irascível, culto ou distraído, inteligente ou desorganizado. Mas era essencialmente um espírito livre que desconfiava de hierarquias, recusava estatutos, abominava dependências e acreditava no poder da responsabilidade individual. Estagiários ou seniores, falava e ouvia todos de acordo com os saberes ou as funções de cada um. Discordar era normal, criticar as suas escolhas possível, propor alternativas obrigatório. Se o PÚBLICO contribuiu decisivamente para mudar a imprensa e elevar o debate público à custa de uma equipa magnífica de directores, de jornalistas talentosos e estagiários ávidos de mudança, Vicente foi o chefe que tornou tudo possível.
É por isso que falar do Vicente é mais do que falar do PÚBLICO. É falar do país que finalmente começou a libertar-se do mofo e das agendas oficiosas e foi ao encontro da modernidade europeia que mobilizou a nossa geração. É falar do jornalismo sem medo, livre, aberto à cultura, ao mundo ou à ciência. É falar do apego à liberdade plena que recusa a obediência a directórios de partidos ou de ideologias fechadas. É também recordar uma cultura de redacção em que divergir é, mais do que um direito, um dever que faz nascer novas ideias.
Vicente deixou-nos, mas herdámos os seus valores. O PÚBLICO é uma organização feita de pessoas, marcada pelos tempos de crise ou de euforia e, com essas condições, foi sujeito a tempos melhores e outros nem tanto. Mas conserva ainda na sua genética essa liberdade de pensar, de criticar, de propor e essa ideia crucial de que o jornalismo é um trabalho de grupo em que cada um tem de ser livre e capaz de perceber que o mundo é uma coisa mais vasta e melhor do que as vistas da janela. Se muita coisa mudou em 30 anos, é nosso dever preservar esse extraordinário legado. A melhor forma de o homenagearmos não é com vénias: é tentando seguir o seu exemplo.