Comissão para os Mercados e Produtos Florestais deve ser reactivada, defende ex-secretário de Estado
Amândio Torres, titular da pasta das florestas de 2015 a 2017, diz que a comissão, criada em Abril de 2017 e que cessou actividade no ano seguinte, “desenvolvia tanto trabalho que é difícil de engolir que ela tivesse de acabar passado um ano”. O actual Governo diz que “subsistem dúvidas” sobre o modelo de funcionamento, mas garante que a matéria está “em avaliação”.
A Comissão para os Mercados e Produtos Florestais (CMPF) teve uma vida efémera. Foi criada em Abril de 2017, era ministro da Agricultura Luís Capoulas Santos e secretário de Estado das Florestas e Desenvolvimento Rural Amândio Torres. Este último saiu do Governo em Julho de 2017, a seu pedido, “por motivos pessoais”, e foi substituído na pasta por Miguel Freitas, que se manteve em funções até ao final da legislatura.
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A Comissão para os Mercados e Produtos Florestais (CMPF) teve uma vida efémera. Foi criada em Abril de 2017, era ministro da Agricultura Luís Capoulas Santos e secretário de Estado das Florestas e Desenvolvimento Rural Amândio Torres. Este último saiu do Governo em Julho de 2017, a seu pedido, “por motivos pessoais”, e foi substituído na pasta por Miguel Freitas, que se manteve em funções até ao final da legislatura.
A Comissão, essa, cessou a actividade em Abril de 2018, exactamente um ano após ser criada. Era constituída pelo secretário de Estado das Florestas e do Desenvolvimento Rural (Amândio Torres), que presidia, pelo presidente do Conselho Directivo do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), pelo director-geral do Gabinete de Planeamento, Políticas e Administração Geral (GPP) e pelo presidente do Conselho Directivo do Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária (INIAV).
A missão desta comissão era ambiciosa: “Conciliar estratégias de regulação de mercado no que respeita aos recursos florestais, designadamente através da monitorização permanente dos recursos florestais disponíveis e do acompanhamento das condições de mercado existentes, de molde a potenciar uma maior valorização dos produtos florestais e, consequentemente, a rentabilidade obtida com os mesmos”, lê-se no Despacho n.º 3088/2017, de 12 de Abril, assinado por Capoulas Santos.
Na sua dependência, estava previsto o funcionamento dos grupos de trabalho que esta viesse a determinar, os quais deveriam desenvolver, entre outras, as seguintes actividades: a) Recolha de dados com vista ao tratamento e sistematização da informação sobre recursos e produtos florestais; b) Elaboração de estudos de análise prospectiva nas ópticas da oferta e da procura de produtos florestais, bem como de novos produtos e soluções tecnológicas; c) Colaboração com os centros de competências e com a comunidade científica no sentido de aproximar as linhas de investigação às necessidades dos investidores florestais; d) Elaboração de benchmarking em matérias de mecanismos de comercialização de produtos florestais e acompanhamento da formação de preços desses produtos; e) Realização de propostas para a regulamentação do sector e de desenvolvimento de novos modelos de negócio.
Capoulas Santos remete para o actual Governo
Estamos na presença de um sector económico relevante. No preâmbulo do despacho através do qual foi criada a comissão, era assumido pelo Governo, à data, que “a floresta é um recurso natural que ocupa dois terços do território nacional, que gera diversos produtos de suporte às fileiras industriais, desde o papel ao mobiliário e que representa mais de 3% do PIB nacional”.
Hoje, de acordo com os últimos dados da Direcção-Geral das Actividades Económicas, o peso do volume de negócios das indústrias florestais na economia portuguesa em percentagem do Produto Interno Bruto (PIB) “aumentou no período entre 2010 e 2017, de 4,22% para 4,74%”.
Ao PÚBLICO, o ex-ministro da Agricultura Capoulas Santos foi parco em comentários e remeteu os detalhes para o actual Governo. “As questões que coloca devem ser respondidas pelo Ministério da Agricultura ou do Ambiente, onde estarão depositados todos os registos documentais das respectivas reuniões”, disse o ex-governante via e-mail. E acrescentou: “Ignoro se o despacho [de criação da comissão] foi revogado. Se não foi, mantém-se, obviamente, em vigor.”
Questionado sobre se a comissão deixou de reunir e de funcionar ainda na anterior legislatura, quando era ministro da Agricultura, e quais as razões para tal, Capoulas Santos apenas disse: “Durante o período do mandato do governo anterior, entre 2017 e 2019, a comissão reuniu o número de vezes que se considerou adequado que deveria reunir.”
Reactivação da comissão: “Uma matéria em avaliação”
De acordo com as respostas enviadas ao PÚBLICO via e-mail pelo actual secretário de Estado da Conservação da Natureza, das Florestas e do Ordenamento do Território, João Catarino, “a CMPF foi criada pelo Despacho do Ministro da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural n.º 3088/2017, publicado no D.R. n.º 73, 2.ª Série, de 12 de Abril, no qual se previa que esta comissão teria a duração de um ano, pelo que formalmente cessou actividade em Abril de 2018 conforme previsto”.
Questionado sobre se as razões por que foi criada a comissão se mantêm válidas, o actual governante explica que “um dos objectivos da CMPF foi o de criar uma estrutura ágil e especializada, fortemente vocacionada para fomentar a recolha de informação, sua avaliação, análise prospectiva e acompanhamento do mercado dos produtos florestais, mantendo-se actual este objectivo”. Contudo, diz João Catarino, “subsistem dúvidas se o modelo considerado à data da criação da CMPF será o mais adequado no momento actual, encontrando-se esta matéria em avaliação”.
O PÚBLICO também questionou o ex-secretário de Estado das Florestas Miguel Freitas, que sucedeu a Amândio Torres, sobre o fim da actividade da Comissão para os Mercados e Produtos Florestais e a sua não-renovação. Recusou fazer “um juízo de valor” em relação à actuação do Governo, lembrou a duração de um ano da referida comissão e explicou que “foi criado um grupo temático alargado no âmbito dos parceiros” integrado na PARF - Plataforma de Acompanhamento das Relações nas Fileiras Florestais.
“Se eu entendi que esse trabalho ficava mais bem integrado se fosse trabalhado na PARF, não havia necessidade de duplicar competências”, defende. Além do mais, no âmbito dessa plataforma, “há muito trabalho feito”, garante Miguel Freitas.
“Grandes fileiras ausentaram-se do interprofissionalismo”
O fim da actividade da CMPF após um ano de mandato desagradou a Amândio Torres. Em declarações ao PÚBLICO via telefone, o ex-secretário de Estado das Florestas já não se lembrava de que a comissão tinha o mandato inicial de um ano. “Não tenho presente… Mas sim, o despacho diz que é com a duração de um ano, terminando com a apresentação de um relatório com propostas de actuação”, corrige de seguida, após consultar o documento.
Afirma, porém, que “a comissão desenvolvia tanto trabalho que é difícil de engolir que ela tivesse de acabar passado um ano. Porque iam ficar, naturalmente, imensas pontas soltas. Era um trabalho muito fundo, mais até para uma agência do que para uma comissão, como foi a solução encontrada”, diz Amândio Torres.
Uma coisa é certa: “Subentende-se daqui que podia haver hipótese de continuidade deste formato”, diz o ex-secretário de Estado. Até porque o nº 6 do Despacho n.º 3088/2017, assinado por Capoulas Santos, dispõe que “A CMPF tem a duração de um ano, no termo do qual é apresentado para homologação do Ministro da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural, relatório final com proposta de atuação, designadamente no que respeita à prossecução da missão e objetivos referidos no n.º 1 do presente despacho”.
O antigo titular da pasta das Florestas até compreende que, após “um conjunto de reuniões bilaterais com parceiros”, a dinâmica da comissão tenha sido “interrompida em sequência dos dramáticos incêndios de Junho e Outubro de 2017”, como referiu ao PÚBLICO o actual secretário de Estado das Florestas, João Catarino.
Em todo o caso, “a portaria do Governo apontava para a necessidade de criar maior valorização dos produtos florestais, maior sustentabilidade, que tem que ver com o rendimento, o que era um dos objectivos de fundo no âmbito da reforma florestal”, pelo que lamenta que aquela estrutura tenha deixado de ter actividade.
Diálogo e monitorização da situação da fileira
“Esta é uma matéria que me é cara”, admite Amândio Torres. “Temos uma lei do interprofissionalismo florestal, da Assembleia da República, que é de 1999 [Lei n.º 158/99, de 14 de Setembro]. Era secretário de Estado do Desenvolvimento Rural [com a tutela das Florestas] Vítor Barros e ministro da Agricultura o Capoulas Santos” no governo de António Guterres, quando esta Lei de Bases do interprofissionalismo florestal foi criada.
O diploma, lembra Amândio Torres, “subentende a necessidade de os agentes, por fileira ou por grupos, se organizarem, no sentido de fazerem uma prática de diálogo e de monitorização da situação da fileira”. O problema é que não produziu os frutos pretendidos e “a única fileira que, entretanto, foi criada foi a da cortiça, a Filcork”. Depois, “curiosamente e infelizmente, o sector perdeu uma coisa importante em termos de organização: a AIFF - Associação para a Competitividade da Indústria da Fileira Florestal, que foi extinta”.
Valor mínimo de venda de produtos lenhosos
O ex-secretário de Estado das Florestas sublinha que, nesse processo de extinção, “a única coisa que está ainda em pé são as obrigações que a AIFF tem perante o Estado português, porque foi objecto de apoios públicos e tem de honrar essas obrigações, mas, de resto, aquilo infelizmente acabou”. Em resultado, “as grandes fileiras [eucalipto, pinheiro-bravo e sobreiro] ausentaram-se deste processo [do interprofissionalismo florestal]”.
“Isso é mau para o país, dada a importância que [o sector florestal] tem”. Por isso, “havendo esta desistência da AIFF, e não avançando o interprofissionalismo, essa função [de regulação subjacente à Comissão para os Mercados e Produtos Florestais] devia ser recuperada”.
Amândio Torres cita a recente entrevista de Pedro Serra Ramos ao PÚBLICO: “Como disse o presidente da ANEFA, o Estado não pode impor preços, mas pode regular. Em Espanha, existe a figura das tablas madereras, onde assentam a indústria, os intermediários e os produtores. É uma estrutura interprofissional”, sublinha.
Alguns dias antes da publicação da portaria instituidora da CMPF, a 12 de Abril de 2017, Amândio Santos tinha proferido uma intervenção pública, a 30 de Março de 2017, em que apontava para a necessidade de “lançar um olhar bem abrangente sobre o significado ‘da Importância do Mercado na Valorização da Floresta’”.
E avisou durante essa intervenção que era “muito importante” o cumprimento de “cinco tópicos”: o valor mínimo para venda de produtos lenhosos de cada espécie na exploração, abaixo do qual seja impossível manter a actividade de silvicultura; o valor mínimo para as operações de exploração florestal, abaixo do qual seja impossível viabilizar uma empresa de exploração florestal; o valor máximo de compra, à porta da fábrica, de produtos lenhosos de cada espécie, acima do qual seja inviável a laboração; o valor mínimo de venda dos diferentes produtos industriais de base florestal, abaixo do qual a indústria perde a capacidade competitiva nos mercados externos; e o intervalo de valor a atribuir à produção para que esta adira a processo de certificação.
Amândio Torres não tem dúvidas de que, em 2017 como hoje, “é de toda a pertinência que haja um sistema de regulação” no sector florestal, “que haja diálogo suficiente para nenhum [dos operadores] ter arrogância e prepotência sobre outros”. Defende, por isso, “que esta Comissão seja retomada e que todos os intervenientes da fileira voltem a sentar-se à mesa e reúnam regularmente”.
Almofada para esmagamento de preço
“Há uma tendência grande para que os serviços do ecossistema sejam uma forma de pagamento. Mas os serviços do ecossistema têm de ser pagos. É legítimo. E não podem servir de almofada para o esmagamento de preço”, lembra Amândio Torres. Portanto, “terá de se evoluir para uma coisa supletiva e não incorporada na forma do preço dos produtos, porque, senão, estamos a defraudar o princípio”, diz o ex-governante.
Amândio Torres lança o olhar sobre cada uma das fileiras: “O sector do pinho em Portugal tem por princípio não ter propriedades próprias. Vive de um esquema de colecta do que os outros produzem e do que os outros fazem.” Depois, “a fileira da pasta de papel não é assim, mas faz assim. Porque havendo 800 mil hectares de eucalipto no país, 200 mil hectares estão sob gestão deles”.
“Era ideal que não fosse este o balanço, porque a fixação e a definição de preços para participações destas corresponde, de facto, a estar a desprezar o sector primário, que é onde se produz”, diz. E, “se não se fizer esta concentração de objectivos, a prazo estamos a contribuir para que cada vez mais o rendimento diminua e haja cada vez menos interesse em fazer floresta”. Este assunto, diz, “interessa à indústria transformadora. Ela não é filantrópica, nós sabemos que tem de ser rentável, mas não podem ser os produtores a serem as instituições filantrópicas.”
Por fim, e entre a produção e a transformação, “também temos de estimar um sector que é extremamente importante, o da comercialização e das operações florestais, fundamental para manter a logística de abastecimento às indústrias”. Mas isto, diz Amândio Torres, “só vai funcionar se houver rendimento; se não houver rendimento, fica desequilibrado. A procura do equilíbrio é fundamental para o futuro. Se não houver equilíbrio, estamos a cavar cada vez mais fundo.”