Kosovo – ontem e hoje
Se para os ricos países da Europa ocidental questiona-se a permanência na União Europeia (excetuando casos menos prósperos como o de Portugal), na parte oriental do continente a UE continua a ser um sonho por alcançar, sinónimo de mais dinheiro, paz e democracia. Neste sentido, com a integração europeia no horizonte, os líderes da Sérvia e Kosovo reuniram-se na semana passada, na Casa Branca, com o objetivo de discutir uma aproximação entre os dois países, fomentada pela promessa do progresso económico resultante da concretização de projetos conjuntos e abertura mútua das duas economias.
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Se para os ricos países da Europa ocidental questiona-se a permanência na União Europeia (excetuando casos menos prósperos como o de Portugal), na parte oriental do continente a UE continua a ser um sonho por alcançar, sinónimo de mais dinheiro, paz e democracia. Neste sentido, com a integração europeia no horizonte, os líderes da Sérvia e Kosovo reuniram-se na semana passada, na Casa Branca, com o objetivo de discutir uma aproximação entre os dois países, fomentada pela promessa do progresso económico resultante da concretização de projetos conjuntos e abertura mútua das duas economias.
A relação entre a Sérvia e o Kosovo é extremamente complexa e tão antiga como a própria fundação da nação Sérvia. O território hoje conhecido como Kosovo tem uma história nebulosa e pouco documentada até meados da baixa idade média. É sabido que os eslavos colonizaram a região sob as bandeiras do Império Sérvio e do Reino Sérvio, eventualmente miscigenando-se com as tribos balcânicas locais, até ao ano de 1389 – data em que se iniciou uma grande transformação étnica, religiosa e cultural na região até à atualidade. Neste ano foi travada a famosa Batalha do Campo dos Melros (ou Batalha do Kosovo) opondo uma coligação de senhores da guerra sérvios liderados pelo príncipe Lázaro, aos otomanos encabeçados pelo sultão Murad I. Apesar das inúmeras perdas em ambos os lados da contenda, ficou para a história a derrota sérvia e a subsequente ocupação otomana que só terminaria no século XX. Comparando com a história de Portugal, o momento assemelha-se à Batalha de Alcácer-Quibir; tal como no caso português, grande parte da nobreza sérvia perdeu a vida no campo de batalha.
O Império Otomano trouxe consigo o Islão e uma nova classe dirigente, resultando numa alteração dos equilíbrios de poder na região. Ao longo dos séculos assistiu-se progressivamente à saída de população sérvia e à entrada de população albanesa que, apesar de resistência inicial, converteu-se em larga escala ao Islão e apresentou sempre maiores taxas de natalidade. Se nos anos 50 do século XX os albaneses do Kosovo constituíam cerca de 60% da população, atualmente constituem mais de 90% do total.
Apesar do Kosovo ter uma importância simbólica e uma certa aura sagrada para a Sérvia, a verdade é que a região se constituiu num país onde se fala sobretudo albanês e onde se presta homenagem ao sultão Murad I junto do seu túmulo, no distrito de Pristina. Nesta geografia em particular, poderá afirmar-se que o projeto geopolítico da Grande Sérvia perdeu a guerra para o sonho de constituição de uma Grande Albânia.
Mas nos Balcãs, como no resto do mundo, o conflito de interesses não é somente regional. Atrás da cortina da relação entre a Sérvia e o Kosovo joga-se o xadrez da geopolítica mundial. No rescaldo do acordo histórico entre os Emirados Árabes Unidos e Israel, o Presidente Trump pretende alcançar mais uma vitória na arena internacional com o argumento da cooperação económica para juntar os dois países; no mesmo sentido, outros membros de peso da NATO (nomeadamente a França e Alemanha) pedem uma reconciliação entre os dois países. Noutra perspetiva, parceiros próximos do regime de Belgrado, como a Rússia e China, apoiam a Sérvia na guerra fria com o Kosovo e não reconhecem a independência do recente país.
O acordo firmado apresenta algumas fragilidades, considerando o seu contexto e o próprio conteúdo. O momento que muitos apelidam de histórico é somente um início de diálogo entre os dois países, nada mais do que isso. O texto do documento é algo vago, mencionando genericamente a criação de postos de trabalho e desenvolvimento de infraestruturas entre os dois países. E apesar das palavras de regozijo de Donald Trump e do primeiro-ministro kosovar Avdullah Hoti sobre a futura interconectividade de ambas as economias, o presidente sérvio Aleksandar Vucic arrefeceu as expectativas e seduziu o seu eleitorado ao afirmar que o acordo é com os EUA e não com o Kosovo.
A questão do reconhecimento da independência do Kosovo, declarada em 2008, não foi nem será ultrapassada com o presente acordo ou num futuro imediato; e esta é condição sine qua non para a completa normalização da relação entre os dois estados e uma eventual entrada na UE.
Há 21 anos registou-se o fim da Guerra do Kosovo que, apesar da grande dimensão de refugiados e mortandade provocada, foi apenas mais um dos muitos episódios do conflito atávico entre sérvios e albaneses. Atualmente vivem-se tempos de lume brando nos Balcãs e o futuro irá desvendar se a paz presente não passa apenas de um intervalo entre a guerra passada e guerra vindoura.