BES “escondeu” malparado através de sucessivas reestruturações de créditos problemáticos
Auditoria destaca falhas o modelo de governance do banco até 2014, particularmente na falta de análise de risco das operações de crédito.
O Banco Espírito Santo (BES) recorreu a várias soluções para manter créditos em situação regular, quando deveria ter assumido o seu incumprimento, o que exigiria a constituição de imparidades e teria reflexos nos capitais próprios.
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O Banco Espírito Santo (BES) recorreu a várias soluções para manter créditos em situação regular, quando deveria ter assumido o seu incumprimento, o que exigiria a constituição de imparidades e teria reflexos nos capitais próprios.
A auditora Deloitte, no relatório que fez aos actos de gestão do BES/Novo Banco entre 2000 e 2018, identifica essas práticas, ao referir “numa parte relevante das operações analisadas, que se verificaram processos sucessivos de reestruturação, nomeadamente através da prorrogação de prazos, em alguns casos sem o reforço de garantias reais, e incluindo em algumas situações a transformação das condições de reembolso em prestações bullet [pagamento no final do prazo] e a capitalização de juros”.
Destaca o relatório que as situações foram identificadas fundamentalmente “no período até 4 de Agosto de 2014, tendo resultado, em consequência, na inexistência de incumprimentos relevantes por parte dos devedores junto do BES”. Ou seja, a instituição liderada por Ricardo Salgado “camuflou” crédito malparado.
A auditoria, que omite parte substancial da informação sobre grupos económicos que geraram perdas ao banco, revela que, “adicionalmente, foram identificadas diversas situações de propostas de crédito, nomeadamente aditamentos com implicações nos prazos de maturidade, aprovadas com datas posteriores à dos contratos subjacentes mas com efeitos retroactivos”.
As consequências desta prática tornaram-se visíveis após 4 de Agosto de 2014, altura em que é criado o Novo Banco, verificando-se “um aumento gradual do crédito vencido, nomeadamente com incrementos relevantes em 2015 e 2016, em resultado, fundamentalmente, de incumprimentos em operações reestruturadas anteriores a essa data”.
A auditoria aos actos de gestão do BES/Novo Banco entre 2000 e 2018 analisou 283 operações, que originaram perdas de 4042 milhões de euros para o Novo Banco entre 4 de Agosto de 2014 (um dia após a resolução do BES) e 31 de Dezembro de 2018.
Concessão de crédito sem análise de risco
O relatório da auditoria aponta “um conjunto de fragilidades ao nível do processo de concessão e acompanhamento de operações de crédito”, que resultavam, entre outras, “em insuficiências na documentação acerca dos devedores, risco das operações e respectivas garantias”.
A título de exemplo, a Deloitte refere que “foram identificadas situações de processos de concessão de crédito sem análises de risco no momento da concessão de crédito ou com limitações relevantes ao nível da informação financeira, orgânica e operacional dos devedores, inexistência de avaliações dos colaterais imobiliários e mobiliários, assim como, no âmbito do processo de acompanhamento, a inexistência de análises de risco regulares dos devedores e excepções ao nível da reavaliação regular dos activos recebidos como colateral”.
As conclusões da auditoria são demolidores para o controlo interno do banco, mas a supervisão do Banco de Portugal não sai ilesa: “No período anterior a 4 de Agosto de 2014 e até Novembro de 2014 não era obrigatória a preparação de parecer prévio por um órgão independente da concessão para aprovação de operações de crédito; o normativo interno em vigor definia apenas a realização de análises de risco anuais, incidindo sobre a situação financeira e posição do cliente ou do grupo económico, e a atribuição de rating interno para os clientes; não estava estabelecida a obrigatoriedade de realização de análise de risco específica ou de emissão de parecer específico sobre as operações, previamente à sua contratação”. “Desta forma - lê-se no relatório - as análises de risco não reflectiam os riscos de crédito específicos associados às operações em análise nem o seu efeito no perfil de risco dos clientes”.
Entre outras “fragilidades”, é destacado que, “até 2013, a aprovação de propostas de crédito a empresas tinha como nível hierárquico mais elevado o Conselho Diário de Crédito (órgão anterior à constituição em 2013 do Conselho Financeiro de Crédito (CFC)), sendo apenas necessária a presença de um membro permanente (membro do Conselho de Administração do BES) para a aprovação de qualquer operação de crédito”.
E mais, diz a auditora: “No âmbito da nossa análise verificamos ser prática as aprovações em Conselho Diário de Crédito serem realizadas apenas por um membro permanente, independentemente do montante, não obstante as operações mais relevantes, de acordo com os critérios definidos em normativo interno, serem sujeitas a conhecimento e ratificação posterior pela Comissão Executiva do BES”. Adicionalmente, não era requerida a participação do administrador com o pelouro de risco no Conselho Diário de Crédito, onde era efectuada a aprovação de operações de crédito”.
A partir de 2013, a composição do CFC passou a variar em função da tipologia e do montante da operação, nomeadamente, com um membro permanente, dois membros permanentes e CFC Alargado, com três membros permanentes (neste caso incluindo, obrigatoriamente, o presidente da Comissão Executiva ou um dos administradores com o pelouro financeiro ou de risco), referem os auditores. E acrescentam que, “no período após a resolução, verifica-se que o Novo Banco implementou de forma gradual um conjunto de alterações nos seus normativos e procedimentos internos, que contribuíram para a melhoria dos processos nesta matéria”.