Cuidados de saúde para além da covid-19
Apesar de o SNS ter revelado uma significativa resiliência perante a crise sanitária, a reforma do sistema de saúde não pode ficar apenas por uma abordagem que vá para além da construção de novos hospitais.
A pandemia provocada pela covid-19 é uma crise de muito difícil resolução e de consequências imprevisíveis do ponto de vista sanitário, político, económico, social e de segurança.
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A pandemia provocada pela covid-19 é uma crise de muito difícil resolução e de consequências imprevisíveis do ponto de vista sanitário, político, económico, social e de segurança.
Portugal tem vindo a testemunhar um agravamento da situação de saúde pública e a sofrer disrupções na vida quotidiana da população, a nível individual e colectivo. Que está a desfocar o acesso da população aos serviços de saúde. Isto acontece quer seja pelo medo dos doentes em recorrer à Urgência, quer seja pelo fecho de muitos serviços e uma dedicação quase total do Serviço Nacional de Saúde (SNS) ao tratamento da covid-19, que poderá estar a negligenciar outras doenças, com consequências fatais.
Por outro lado, o agravamento da situação clínica dos doentes, depois de meses de afastamento das consultas e tratamentos, é inevitável! A pandemia manteve o SNS encerrado aos cuidados não urgentes durante todo o estado de emergência. É uma realidade que tudo o que diz respeito à prevenção e detecção precoce foi abandonado. Não houve consultas e muitas ficaram por remarcar. Os diagnósticos tardios vão agravar a situação.
É inaceitável que os exames não se realizaram por receio dos doentes em irem ao hospital! O controlo de doentes oncológicos ocorriam a cada três meses e já vão em intervalos maiores, que ultrapassam o recomendado pelos especialistas.
Acontece que não se tem feito a gestão da doença, mas apenas da pandemia. E de acordo com o Centro de Estudos de Medicina (Faculdade de Medicina de Lisboa) já foi constatada a grave ausência de cuidados essenciais a cerca de 2 milhões de doentes crónicos.
O excesso de mortes poderá ser explicado, porque houve pessoas a serem tratadas fora de tempo, seja por culpa própria ou do sistema, sendo mais difícil chegar ao médico, pois a maioria das consultas é feita por via telefónica.
O grande desafio do SNS, no curto prazo, vai ser organizativo, porque se vão juntar quatro tipos de doenças: a covid-19, os que têm gripe normal mas que podem ter covid-19, os que têm doenças já diagnosticadas e os que não têm coisa nenhuma mas estão em pânico.
A triagem bem feita nos Centros de Saúde (CS) vai ser determinante, pois os CS são unidades básicas do SNS para atendimento e prestação de cuidados de saúde primários à população. No entanto, milhares de portugueses deixaram de recorrer aos cuidados de saúde primários, porque em muitos CS tem sido negado o direito ao acompanhamento médico, que elimina ou reduz a dimensão preventiva e o acesso ao diagnóstico. Que coloca em risco de vida e à falta de qualidade de vida de muitos doentes devido às restrições que estão a ser impostas ao SNS.
Desde há décadas que as políticas de saúde atribuem uma função primordial aos cuidados primários e uma posição central ao CS na estrutura global dos cuidados. Todavia, o sistema de saúde tem sido descrito como profundamente dependente da utilização dos hospitais. Com o efeito da pandemia, se nada for feito ao nível dos CS para um acesso mais expedito, por parte da população, haverá um impacto muito negativo na saúde pública.
Apesar do SNS ter revelado uma significativa resiliência perante a crise sanitária, a reforma do sistema de saúde, no médio e longo prazo não pode ficar apenas por uma abordagem que vá para além da construção de novos hospitais. Importa articular de forma mais adequada e eficiente os cuidados de saúde primários com os cuidados de saúde hospitalares e cuidados de saúde integrados.
Em relação à estratégia sectorial devia ser definido o nível de ambição e efectuado o levantamento do efectivo de médicos e enfermeiros necessários, até 2030, tendo em vista a contratualização adequada ao seu perfil específico de competências e apoiados num plano abrangente de capacitação que os habilite a níveis superiores.
Por último, importa ter em conta os seguintes aspectos: é inadiável a reforma das carreiras médicas; tem de ser avaliado o funcionamento dos serviços de saúde pública e seus profissionais em rede, em ambiente inteligente e colaborativo; fazer o levantamento do sistema de informação de saúde integrado e de base populacional, bem como o acesso a novos instrumentos de apoio ao planeamento e intervenção em saúde pública.