A indústria que “conserva” a história do Estado Novo
As conservas de sardinha lideraram os mercados internacionais durante as décadas centrais do século XX. Este sucesso deveu-se à qualidade e preferência dos consumidores, mas também às condições económicas e sociais da indústria que, em boa parte, foram determinadas pelo regime autoritário.
Corria o ano de 2014 quando me apercebi da existência, em Algés, de um arquivo documental imenso, de acesso público e quase por explorar: o arquivo do Instituto Português das Conservas de Peixe (1936-1986). Com a ajuda da dra. Manuela Gomes, percorri os documentos (livros de atas, relatórios, registos de marcas de conservas e álbuns fotográficos) que estavam à guarda do atual Ministério do Mar. Esta circunstância não era uma coincidência. O instituto, que sobrevivera ao final do Estado Novo, foi um precursor da Direção-Geral dos Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos, como explica um organograma disponível no site. Trata-se, portanto, de um arquivo histórico, que a administração pública tem a responsabilidade de preservar, segundo a legislação vigente.
Cumpria-se assim um dos requisitos para levar a cabo um projeto de doutoramento em História: a descoberta de um fundo documental que permitia testar os conhecimentos adquiridos sobre um período concreto. A saber: a história política e institucional do Estado Novo e, em particular, os efeitos do intervencionismo do Estado sobre a economia portuguesa. Daí pude partir, com a ajuda dos meus orientadores, Dulce Freire e Álvaro Garrido, e dos colegas e professores do Programa Interuniversitário de Doutoramento em História, para uma pergunta de investigação pertinente. Que razões explicavam o sucesso da indústria conserveira? Ou, por outras palavras, quais foram as vantagens de uma indústria portuguesa num mundo cada vez mais competitivo e globalizado?
As conservas ocupam um lugar importante no imaginário dos portugueses e têm sido objecto de uma folclorização talvez exagerada. Nos locais de maior afluência turística, incluindo as vilas medievais, encontramos lojas e feiras populares que vendem latas de sardinhas. As memórias do trabalho nas fábricas, segmentado entre homens com um vínculo permanente e multidões de mulheres com uma ocupação irregular e sazonal, merecem um projeto de recolha sistemática. Entre 1933 e 1960, as conservas de sardinha representaram 13% do valor das exportações e cerca de 16% da população ativa na indústria portuguesa. De Matosinhos a Olhão, de norte a sul, cidades inteiras viveram da pesca e enlatamento da sardinha, como recordam, por exemplo, os museus de Portimão e de Michel Giacometti, em Setúbal.
Entre o final do século XIX e a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a produção de conservas cresceu a um ritmo superior ao de outras actividades económicas, estimulada pela industrialização da pesca de sardinha e o aumento da procura externa, sobretudo durante a guerra das trincheiras. Durante o Estado Novo, esse percurso ascendente consolidou-se até que acabou por entrar num irremediável declínio.
Uma história em três actos
A formação do Estado Novo ocorreu numa conjuntura económica internacional difícil: a Grande Depressão, de 1929 a 1934, que provocou um retrocesso generalizado no comércio internacional. No verão de 1931, Salazar, ainda ministro das Finanças, dirigiu-se ao Algarve para estudar a organização da indústria de conservas e o problema da queda acentuada dos preços. Em Dezembro, publicou nos jornais um relatório em que sugeria a criação de um centro monopolizador das exportações. No ano seguinte, formou-se o Consórcio Português das Conservas de Sardinha e, após a entrada em vigor da nova Constituição de 1933, o consórcio deu lugar à criação do Instituto Português das Conservas de Peixe. As competências atribuídas ao instituto, desde a decisão sobre a criação de novas empresas e fábricas até à fixação de preços e à concessão de créditos aos industriais, eram inusitadamente amplas.
Note-se, em especial, a pretensão de se fixarem preços mínimos às conservas vendidas no estrangeiro. Sebastião Ramires, conserveiro e ministro da Agricultura, Comércio e Indústria, defendia, em 1934, que era missão do Estado fixar o preço justo das conservas em função do seu custo de produção, em alternativa às leis do mercado. Os preços subiram entre 1932 e 1936, mas voltaram a cair em 1937. No final da década, multiplicavam-se as denúncias de fraude nos preços mínimos e a ineficácia das sanções impostas pelo Instituto. A missão exportadora estava em risco e com ela a credibilidade do novo regime.
Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), Portugal, país neutral, apostou no comércio estratégico para assegurar a sobrevivência do regime. As conservas foram uma moeda de troca nas relações com a Inglaterra e a Alemanha. A indústria de conservas, ao contrário da “febre” do volfrâmio, necessitou da íntima colaboração das autoridades para receber a folha-de-flandres com que fabricava as latas, que Portugal não produzia, e obter os contratos de vendas coletivas de conservas com os Estados em guerra. A ação do instituto e da rede de grémios de industriais saiu reforçada nos anos do conflito mundial. E, nas décadas seguintes à guerra, a indústria viveu a sua idade de ouro.
O crescimento neste período teve duas causas fundamentais: a modernização da pesca da sardinha e a cooperação económica europeia, em que Portugal participou a partir de 1948 com a aceitação da ajuda do Plano Marshall e o ingresso na Organização Europeia de Cooperação Económica. A liberalização do comércio europeu mostrou que a indústria de conservas tinha melhores hipóteses de expansão em tempos de paz do que durante a guerra.
Que balanço podemos fazer desta evolução? A primeira ideia é que as conservas foram um objeto político, cuja importância para o equilíbrio das contas públicas era fundamental. Desde os anos 30, o discurso idealizado sobre a autossuficiência da produção nacional de trigo, vinho ou bacalhau foi compensado pela necessidade de fazer importações. Por sua vez, as exportações de conservas, cortiça e vinho do Porto foram, até aos anos 60, a fonte privilegiada para obter os meios de pagamento das importações. Em segundo lugar, Portugal não estava, no domínio das relações económicas, “orgulhosamente só”. Várias investigações destacaram a adesão gradual às organizações de cooperação multilateral. Mas é ainda necessário entender que essas mesmas relações foram essenciais para a estabilidade interna do regime.
A arquitectura do Estado e os conserveiros
A partir do século XVIII, os economistas clássicos estabeleceram uma teoria geral do comércio internacional. Entre outras ideias, sugeriram que os países poderiam ter vantagens comparativas se assumissem um grau de especialização que trouxesse maior eficiência e qualidade aos seus produtos. Esta necessidade de especialização esteve presente na ação do Estado sobre o desenvolvimento da indústria de conservas. Através de mecanismos regulatórios, como o condicionamento industrial, e da organização corporativa, os poderes públicos favoreceram a produção de conservas de sardinha em prejuízo de outros produtos e espécies, como as conservas de atum ou os produtos congelados. As empresas conserveiras foram impedidas de introduzir novas tecnologias como a instalação de câmaras de congelação ou, ainda, a captação de investimento estrangeiro. Ao mesmo tempo, porém, achavam-se protegidas pela lei que proibia a criação de novas fábricas e o aumento da capacidade de produção instalada. Este modelo de desenvolvimento entrou em ruptura em 1966, com a quebra das capturas de sardinha e a ascensão dos concorrentes mundiais, em especial a indústria marroquina.
O mundo, entretanto, mudara. Um dos fenómenos mais interessantes do segundo pós-guerra é a chamada “atunização” do mercado, com o desenvolvimento da pesca do atum tropical e o aumento do seu consumo no Japão e Estados Unidos da América. Apesar de a produção atuneira ter crescido no arquipélago dos Açores, Portugal manteve-se relativamente indiferente a esta mudança. A reestruturação profunda do sector só seria feita durante a democracia.
Devemos, por isso, questionar em que medida os conserveiros constituíram uma base de apoio social ao regime autoritário, à semelhança do que ocorreu com a Cofindustria na Itália de Mussolini. Nuno Madureira, no livro A Economia dos Interesses, sugere que o Estado Novo teve a capacidade de organizar uma “economia desarticulada” e resolver os numerosos conflitos de interesse herdados da República e da ditadura militar. Como já outros estudos sublinharam, houve uma clara desilusão dos conserveiros com o funcionamento dos organismos corporativos, a sua exclusão dos processos de decisão e a antipatia com medidas restritivas como os preços mínimos. Mas em 1955, segundo um inquérito consultado na Torre do Tombo, uma grande parte era favorável à manutenção das regras que limitavam as liberdades individuais em troca de garantias como as quotas de exportação e a distribuição de azeites a bons preços. Os conserveiros dificilmente poderiam, numa ação coletiva, fazer uma oposição frontal à ordem institucionalizada.
Em conclusão
Quando iniciei o doutoramento no Instituto de Ciências Sociais, conhecia a obra seminal de Manuel de Lucena sobre a evolução do sistema corporativo, a que se seguiram as importantes análises de Fernando Rosas e outros historiadores. O trabalho de uma tese não é tão solitário quanto parece. Além da leitura crítica das fontes e bibliografia, é necessário fazer uma comparação com outros países e atividades produtivas que torna investigação menos “paroquial”. Neste caso, a comparação ganha maior acuidade e é indispensável para compreender as vantagens das exportações portuguesas. As dinâmicas do crescimento da indústria de conservas de sardinha são irrepetíveis, mas o seu estudo pode trazer valiosos conhecimentos para o presente.
O autor escreve segundo o novo acordo ortografico