Ninguém cala a Joana Gama, nem mesmo o medo constante de falhar
Alguém Que Me Cale é o terceiro livro de Joana Gama. Locutora e comediante de profissão, Joana Gama assume nestas páginas a sua incapacidade de controlar aquilo que lhe vai na alma.
Joana Gama lança neste sábado o seu terceiro livro — Alguém Que Me Cale — na Feira do Livro de Lisboa. Depois de Estou Toda Grávida e A Mãe é que Sabe, em co-autoria com Joana Paixão Brás, a comediante, cuja presença enche qualquer sala, mesmo a mais vazia e sem graça, conta agora o seu percurso em 142 páginas de exposição crua e directa, numa edição da Arena.
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Joana Gama lança neste sábado o seu terceiro livro — Alguém Que Me Cale — na Feira do Livro de Lisboa. Depois de Estou Toda Grávida e A Mãe é que Sabe, em co-autoria com Joana Paixão Brás, a comediante, cuja presença enche qualquer sala, mesmo a mais vazia e sem graça, conta agora o seu percurso em 142 páginas de exposição crua e directa, numa edição da Arena.
O currículo já é longo: iniciou-se na rádio, passando pelos estúdios da RFM e da Mega Hits. Passou pela apresentação na SIC Radical, esteve no Maluco Beleza de Rui Unas e agora faz o programa de rádio Prova Oral, com Fernando Alvim. Juntamente com Rita Camarneiro apresenta o podcast Banana-Papaia, no qual não há limites, e tem ainda o seu próprio podcast — Psychoterapia. Neste mês de Setembro vai voltar aos palcos para fazer stand-up ao lado de Guilherme Duarte no Teatro Maria Matos, em Lisboa.
Entre o início, o meio e o fim da vida, Alguém Que Me Cale dá a conhecer ao leitor os melhores e os piores momentos de Joana Gama, sem estigmas. Traumas, complexos, receios e inseguranças são alguns dos temas que a radialista aborda de forma por vezes humorística e outras mais fora de brincadeiras. A comunicadora divide-se entre achar que consegue fazer, ser e alcançar o que quiser e, no momento seguinte, deitar abaixo quaisquer expectativas que tenha criado. Já sentiu que não queria estar cá, mas agora é feliz. Assina este livro com o nome completo — Joana Gama Freire — por sentir que revela a sua identidade e não apenas uma persona.
Porquê incluir o apelido Freire na capa do livro?
Quando entrei na rádio perguntaram-me se queria um nome artístico e decidi que sim, porque tive uma adolescência complicada e o nome Freire não estava associado a memórias positivas. Depois tirei um curso de fotografia e achei que era algo que revelava muito bem a minha identidade e não uma persona, então comecei a assinar o meu trabalho fotográfico com o meu nome todo. Foi isso que senti em relação a este livro. É tão cru. Associo a Joana Gama a uma persona um bocadinho histérica e este livro sou eu mesma no meu ritmo normal — tenho esses pontos —, mas não me senti obrigada a corresponder a expectativas que tivessem em relação à minha pessoa.
Este livro é um expressar do que vai na alma?
É uma espécie de assumir a minha incapacidade de controlar aquilo que me vai na alma. Grande parte do meu desconforto e da minha ansiedade vem de me tentar retrair para me encaixar. Com este livro, que surgiu a convite da editora, pensei ‘desta vez não me vou preocupar se fico bem ou não, se utilizo as palavras certas. O que acontece se eu mandar só aquilo que sou?’. E sim, acaba por ser aquilo que me vai na alma, mas não é bem uma escolha.
Refere no livro que não gosta de colocar as coisas em gavetas. Ainda assim, sente que é necessário colocar-se nelas para encaixar neste mundo onde tudo tem de ter uma definição?
Sim. Tenho feito o exercício contrário. Acho que grande parte da minha vida tem sido, numa primeira fase, um grande descontentamento e desajuste por conhecer as gavetas e não perceber onde me encaixo. A segunda foi ter a certeza que não me encaixo em nenhuma. A terceira passa por questionar a existência de gavetas. Tenho muita dificuldade em etiquetar as pessoas de más ou boas, porque sou muito fã de psicologia e de psicanálise e acho que todos temos um lado bom e um lado mau e que reagimos consoante as dinâmicas. Apesar de ter tendência para me rotular de imensas maneiras, é um desafio que estou a pôr a mim própria e que também tento — não vou dizer inspirar os outros, por amor de Deus, não sou o Gustavo Santos! —, mas gostava de propor isso para análise, que todos fossemos um bocadinho mais tolerantes uns com os outros e que estivéssemos menos nervosos para categorizar a realidade.
Não há mesmo quem a cale?
Ainda não! Este livro com esta capa e com este título parece que vou revelar coisas do BES. Alguém Que Me Cale parece um Eu, Carolina ou uma coisa do género, quando é sobre a minha consciência, o meu diálogo interno, as várias vozes na minha cabeça, ainda que não esteja diagnosticado como uma patologia grave. Tem a ver mais com ‘quero só ser, não quero questionar-me, não quero ter medo’. É um ‘acalmem-me’. Também é uma brincadeira, porque a maior parte das pessoas que me conhece sabe que não sou muito de socializar, sair de casa, ir para sítios. Quando saio extravaso imenso e não me calo!
Há algum assunto que seja tabu?
Vários. Muita gente fica chocada por parecer que exponho a minha vida demasiado facilmente. No entanto, por um lado reservo-me ao direito de ficar com algumas coisas para mim, mas houve dois ou três assuntos que ainda não consegui explorar neste livro e que talvez no futuro o faça. Não me inibi muito e confesso que desde a saída do livro que estou um bocadinho tensa, tenho algum receio.
Tem receio da reacção que as pessoas mais próximas possam ter e aquilo que possam pensar?
Exactamente. Há uma linha muito ténue entre o que é a minha história e o que é a história das pessoas que me educaram e eu quero respeitar muito a privacidade dessas pessoas. Mas por outro lado, também quero ter liberdade para contar a minha história. Não posso estar à espera que toda a gente à minha volta morra para ser quem sou, porque imaginem que duram bué tempo! Imaginem que vivem até aos 80 anos! E só aos 60 é que eu ‘ah agora é que vai ser!’. Não pode ser. Tive muito cuidado ainda assim com as coisas que escrevi.
O livro parece percorrer um certo caminho: começa de forma mais leve e cómica e termina de forma mais profunda.
A própria divisão do livro puxa para que no final seja mais depressiva e mais crua, porque falamos do início, do meio e do fim da vida. É-me difícil, para já, fazer humor com a morte e queria mesmo deixar claro no livro esta minha ambivalência tanto para o lado positivo como negativo das coisas. A própria escrita do livro acompanhou-me numa fase da minha vida em que no início estava tudo bem e depois deixou de estar tão bem. Comecei a ficar frustrada, conheci pessoas que me azucrinaram a cabeça, a vida mudou. Ao ler o livro percebe-se perfeitamente quando é que a Joana está num dia bom ou num dia mau.
Imaginou que o seu futuro teria como foco o humor?
Sim. Estou muito perdida, porque aquele exercício de sair de gavetas faz com que não consiga construir uma linha recta. Tenho ambições que não são materializáveis, ou seja, quero sentir-me plena no sentido de olhar para o meu trabalho e para o meu dia-a-dia e pensar que isto faz sentido para mim, mas o meu ego diz-me ‘quero ser comediante, esgotar salas, fazer solos, ser uma das comediantes mais reconhecidas a nível nacional’, mas na prática quando for percorrer esse caminho não sei se vou gostar. Ainda para mais porque sofro dum mal que o meu pai me diz desde pequena que é ‘tu és razoável em tudo’. Se és razoável na natação, na ginástica, no crochê, o que é que te apetece fazer? O que gostava de sentir é que não há nada de errado comigo, que há espaço no mundo para ser como sou e acho que é essa validação que procuro no meu trabalho — sendo como sou não estou errada.
Do que tem medo?
Tenho medo de ser maluca e de ser abandonada. Durante dois anos tive um peixe e sempre que olhava para o aquário, interiormente estava à espera que ele estivesse morto, porque me morreram muitos peixes quando era pequenina e porque os animais morrem. Finalmente, passados dois anos, quando já estava habituada a estar com a porcaria do peixe, o gajo faleceu. Estou sempre à espera disso. Noto que tenho o trauma de abandono e que tenho alguma dificuldade em apegar-me às coisas boas por estar à espera que elas desapareçam. Por exemplo, estou super apaixonada agora pelo meu namorado, ele gosta mesmo muito de mim, mas ‘Ok, esta é a parte boa... Então, quando é que vem...?’. Estou sempre pronta para as coisas acabarem. O de ser maluca tem a ver com isso. Sinto-me deslocada na maior parte dos sítios e isso faz-me sentir maluca.
Acha que não merece as coisas boas que lhe acontecem?
As coisas más sempre tiveram muito mais impacto em mim do que as boas. Raramente me dou mérito pelas coisas boas. Só passados alguns anos é que consigo olhar para aquela fase da minha vida e pensar ‘porra, foi fixe’. Por exemplo, enquanto estava a fazer rádio e a SIC Radical para mim era normal, era o dia-a-dia. Não estava grata nem nada. Mas agora, olhando para trás: ‘Ena, estava no Rock in Rio, fazia rádio na RFM, depois ia para a SIC Radical.’ Estou a tentar fazer isso agora. O Maria Matos [espectáculo de stand-up comedy com o Guilherme Duarte, em Lisboa], o Sá da Bandeira [podcast Banana-Papaia ao vivo no Teatro Sá da Bandeira, no Porto], estar a lançar um livro, fazer a Prova Oral com o [Fernando] Alvim... Começo a perceber que já percorri um caminho. Acho que também é a minha maneira de não ficar nervosa com as coisas. Se eu começo a achar ‘eu mereço isto’ e depois as coisas correm mal, faço o quê?
As expectativas são sempre medianas?
Estou sempre cheia de medo. Nem há expectativas. Balizo-me muito pelas pessoas que acreditam em mim. Respeito muito a Rita Camarneiro [co-apresentadora do podcast Banana-Papaia] e saber que ela quer trabalhar comigo, dá-me uma confiança brilhante. Fernando Alvim a mesma coisa. O Guilherme Duarte escolheu-me a mim para inaugurar o stand-up no Maria Matos. Aí consigo ver, mas de resto não. O facto de ter pessoas a seguirem-me nas redes sociais, nunca senti nada.
No livro refere várias vezes alguns complexos em relação ao físico. Continuam presentes?Não sei o que é causa e o que é consequência, mas claramente separei-me do meu corpo. Sempre fui muito mental, sou só verbalização das coisas, nem tenho grande dom visual, não me sei vestir. O meu corpo nunca fez parte de mim, só agora é que sinto que estou a começar a uni-lo e mesmo isso reflectia-se no início do livro, nas relações que tinha com as outras pessoas. O meu corpo era uma espécie de instrumento. Nunca senti que fosse meu. Agora sim. Muita terapia em cima. Começo finalmente a unir as coisas e acho que é daí que vem o meu esforço recente de voltar a fazer desporto, porque quero estar bem. Isto do corpo é super intrigante, gostava muito de ser psicóloga. Quem sabe. Já pensei nisso. Acho que este livro não me traria clientes. ‘O quê? Tentou matar-se? Se calhar vou a um psicólogo normal, vou ao Quintino!’
Por falar em morte, há uma parte do livro em que refere que houve uma altura da vida em que se não estivesse cá tanto lhe dava. E agora?
Agora já não. É uma bênção. Não quero parecer aquelas pessoas que de repente viram Nossa Senhora de Fátima ou algo do género. Tenho todo o respeito por quem encontra um mecanismo de sobrevivência e de vivência mais fácil que o deixe feliz, mas não, não quero nada morrer. Já houve alturas em que eu quis mesmo falecer e que quis tirar a minha própria vida. Não o fiz na altura por causa de um dos meus irmãos com quem vivia e era a pessoa mais importante para mim. Agora, de repente, cada dia é uma oportunidade de ser mais feliz. Sei que isto parece um diário ranhoso do Mr. Wonderful, mas é verdade. Estou estupefacta como a vida pode mudar consoante a nossa perspectiva. Essa é uma das minhas grandes missões na vida — gostava mesmo que toda a gente que se sente triste, desajustada, sem esperança, percebesse que, mesmo não tendo essa fé, as coisas podem acontecer na mesma com trabalho. Não é sozinhos, porque se já estamos na merda, vamos ficar só mais no lodo. Arranjar ajuda.
Escreveu: “A alegria, por sua vez, não me é natural.” É feliz?
Acho mesmo que tenho um gene depressivo. Não conheço muito para trás a minha família, nunca pude falar muito sobre psicologia, porque ‘o lado psicológico não é assim tão importante’. Tenho tido uma tendência para não conseguir imaginar o positivo, o outcome bom de uma situação. Penso sempre negativo. Sou muito feliz agora. Se calhar ainda dá para ser mais feliz do que isto, não faço a mínima ideia. Acho que fui mesmo abençoada por ter um começo de vida que percepcionei como mau, porque agora é como ter sido privada de um dos meus sentidos durante toda a minha vida e de repente ter o dom de o poder ter e sinto que agora a vida tem sabor. Isso é algo que ninguém me pode tirar neste momento.
Fala do “lugarzinho no céu” nestas páginas. Está garantido?
Acho que cada um tem o seu lugar e não é acima nem abaixo do de ninguém, porque tudo aquilo que nós somos é consequência de alguma coisa que nos aconteceu ou que outras pessoas tenham feito por consequência de alguma coisa que lhes tenha acontecido. Para mim não há bom nem mau. Não há céu nem inferno. Há só um lugar fixe. Um lugar para onde se vai, onde não se é julgado. Se realmente existisse um Deus, alguém que fosse tão poderoso, tão omnipresente, tão sapiente nunca iria categorizar as coisas entre certo ou errado, porque não há. Tudo depende da perspectiva.
Texto editado por Bárbara Wong