Direito à educação e liberdades de educação: A propósito de um Manifesto
Em caso de conflito entre Família e Estado no que diz respeito à educação das crianças, o que está realmente em questão não é um direito da Família ou um direito do Estado, mas o direito da criança à educação.
Foi tornado público um Manifesto “Em defesa das liberdades de educação” (motivado por um caso recentemente noticiado), subscrito por respeitáveis personalidades, em que se alega um direito de “objecção de consciência das mães e pais quanto à frequência da disciplina de Educação para a Cidadania e o Desenvolvimento”. A questão de fundo que suscita é a da relação entre direito à educação e liberdades de educação.
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Foi tornado público um Manifesto “Em defesa das liberdades de educação” (motivado por um caso recentemente noticiado), subscrito por respeitáveis personalidades, em que se alega um direito de “objecção de consciência das mães e pais quanto à frequência da disciplina de Educação para a Cidadania e o Desenvolvimento”. A questão de fundo que suscita é a da relação entre direito à educação e liberdades de educação.
Historicamente, o reconhecimento da liberdade de educação precedeu o reconhecimento do direito humano à educação. Com o reconhecimento deste, a sua relação com aquela tornou-se controversa. A controvérsia reacendeu-se com as políticas de liberalização e privatização da educação, a partir dos anos 1980. O que está principalmente em causa são duas questões: A educação das crianças é um “direito fundamental” dos pais e mães? A “privatização da educação” é compatível com o Direito Internacional da Educação?
Interessa-nos, aqui, apenas a primeira questão. Nela se pode distinguir a dimensão histórica e o conteúdo jurídico. Historicamente, os filhos e filhas foram considerados, durante milénios, “propriedade” dos pais e mães, decorrente do laço biológico. Esta mentalidade justificou ou tolerou generalizadas práticas de infanticídio e, ainda hoje, a tendência para a “clonagem” espiritual das crianças pelos adultos. Por exemplo, num caso julgado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, alegou-se que o “chefe de família” tem “o direito pessoal, absoluto e inalienável de que os filhos e filhos se assemelhem a si intelectualmente e culturalmente”. Um direito que, em muitos casos, invoca principalmente razões e convicções religiosas para reclamar que os filhos e/ou filhas sejam isentos da frequência de certas disciplinas escolares ou mesmo da frequência da escola (caso do “ensino doméstico"). Ou até para justificar o “direito” de bater nas crianças a título de educação.
Juridicamente, o que está em jogo é a relação entre a função dos pais e mães e a função do Estado relativamente à educação das crianças. O Manifesto invoca várias disposições jurídicas internacionais e nacionais, para sustentar uma argumentação que parece excessiva para aquilo que está em causa, e um pouco ad libitum, como quando se alega que a Lei de Bases do Sistema Educativo garante um direito à “objecção de consciência”. Cita o Artigo 7.1 da Convenção sobre os Direitos da Criança (em tradução não rigorosa), quando a disposição mais pertinente está no Artigo 18.1, segundo o qual a preocupação fundamental dos pais e mães deve ser “o interesse superior da criança”. E deve sublinhar-se que nos Artigos 28 e 29 da Convenção, relativos ao direito à educação, já não se encontra o teor do terceiro parágrafo do Artigo 26 da Declaração Universal sobre os Direitos Humanos, sempre invocado neste contexto. Nas suas conclusões do exame do Relatório Inicial da Santa Sé relativamente à aplicação da Convenção – que ratificou com reservas sobre alguns direitos, incluindo o direito à educação – o Comité dos Direitos da Criança recordou que “os direitos e prerrogativas dos pais e mães não podem minar os direitos da criança reconhecidos pela Convenção”.
À luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos, interpretado sistematicamente, não há um “direito fundamental” dos pais e mães em matéria de educação dos filhos e/ou filhas, que não seria compatível com o seu “direito humano” à educação. Como disse um Comité das Nações Unidas, “a educação é direito individual de quem aprende e não, no caso das crianças, direito de um pai ou mãe ou tutor. As responsabilidades parentais, a este respeito, estão subordinadas aos direitos da criança”. Vai no mesmo sentido a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, por exemplo, quando disse: “O direito dos pais e mães ao respeito das suas convicções religiosas e filosóficas está enxertado no direito fundamental à educação [...]. O seu direito corresponde, assim, a uma responsabilidade intimamente ligada à fruição e exercício do direito à educação”. Resumindo: Não há liberdades de educação contra o direito à educação.
Por conseguinte, em caso de conflito entre Família e Estado no que diz respeito à educação das crianças, o que está realmente em questão não é um direito da Família ou um direito do Estado, mas o direito da criança à educação, que deve ser protegido tanto contra o Estado, em caso de tentativa de apropriação totalitária das crianças, como contra a Família, se a integridade física, psicológica ou moral e o pleno desenvolvimento das crianças estiverem em risco. Ora o direito à educação inclui o direito à educação cívica e outras aprendizagens com as quais alguns pais e mães podem não concordar.
As crianças precisam da protecção e orientação dos adultos, em primeiro lugar e acima de tudo das mães e pais, naturalmente, para crescerem e aprenderem a exercer os seus direitos. Ao orientá-las, fazem-no obviamente de acordo com os seus valores e convicções, mas nada têm o direito de impor. Apenas têm a responsabilidade de ser humanamente admiráveis, para que os filhos e filhas desejem imitá-los. Esta é a influência mais legítima e profunda que os adultos podem exercer sobre as crianças.