O futuro em debate: o vazio ocupou espaço

No meu caso específico, que comecei a trabalhar em Cultura em 2013, ainda não houve um único ano em que pudesse ter apenas um trabalho; tive sempre vários, num período quatro em simultâneo, em áreas diferentes, porque espectáculos intermitentes não pagam contas.

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Rui Gaudencio

Tenho o terrível feitio de direccionar a minha ponderação para o lado positivo das catástrofes. Se ainda vivo sobre cada uma, convém-me perceber de que forma continuo. Foi este exercício que fiz com a covid-19, especificamente no sector da Cultura, aquele em que me insiro por defeito.

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Tenho o terrível feitio de direccionar a minha ponderação para o lado positivo das catástrofes. Se ainda vivo sobre cada uma, convém-me perceber de que forma continuo. Foi este exercício que fiz com a covid-19, especificamente no sector da Cultura, aquele em que me insiro por defeito.

Começámos por salvar a ansiedade das almas confinadas, a nossa incluída. Depois, porque o nosso trabalho “fechou”, tivemos finalmente tempo de olharmos uns para os outros, umas para as outras. Isto permitiu que as dores deixassem de ser individuais, fundou-se uma espécie de dor colectiva da cultura em Portugal. Juntámo-nos. Dentro das medidas de segurança, viemos para a rua de Norte a Sul do país, fizemos espectáculos solidários, distribuímos bens, escrutinámos – sem álcool – a senhora ministra, escrevemos sobre as mesmas coisas de que falamos há anos, mostrámos que o sector não se compõe só de artistas e mantemos a extraordinária habilidade de nos desequilibrarmos ficando de pé. O vazio ocupou espaço.

Os dados mais recentes sobre profissionais da cultura são de 2018, recolhidos pelo Observatório Português das Actividades Culturais (OPAC). À data, éramos 131 mil e isso representava 2,7% do total da população empregada. Até ao final deste ano, segundo a senhora ministra, teremos um novo mapeamento, recolhido através de inquérito feito em parceria com este Observatório. Admitindo de antemão o meu privilégio de jovem branca com formação superior, nascida numa cidade do litoral do país, oriunda de uma família igualmente letrada de classe média, que sem nunca me ter sustentado durante a minha fase adulta já me salvou de meses sem trabalho, tenho de perguntar: quantos e quantas de nós duplicam ou triplicam as suas actividades para poder viver ou sobreviver normalmente? No meu caso específico, que comecei em 2013, ainda não houve um único ano em que pudesse ter apenas um trabalho; tive sempre vários, num período quatro em simultâneo, em áreas diferentes, porque espectáculos intermitentes não pagam contas. É o “quotidiano multitasking desafiador e exigente” que o Tiago Guedes, director artístico do Teatro Municipal do Porto, descreveu num artigo publicado no PÚBLICO em Abril deste ano. E sei que não estou sozinha. Talvez o novo mapeamento possa mostrar quem mais se encontra nesta situação. Comum.

Também o estatuto do trabalhador intermitente chegará até ao final do ano, expressou a senhora ministra. Em Maio de 2018, a Fundação GDA (Gestão dos Direitos dos Artistas) apresentou O Estatuto Profissional do Artista, um relatório de levantamento do regime laboral e de segurança social nacional e dos regimes estrangeiros. Bem exaustivo, detalhado, de onde resgato as seguintes considerações do CENA-STE, Sindicato dos Trabalhadores, do Audiovisual e dos Músicos: “Os trabalhadores e trabalhadoras do espectáculo e do audiovisual estão permanentemente confrontados com a impossibilidade de acederem a vários direitos sociais e laborais. Esta dificuldade de acesso está naturalmente relacionada com a sua condição laboral que é de extrema precariedade nos vínculos, com períodos longos de inactividade e, nos últimos anos, com um decréscimo significativo nos rendimentos” (pág. 69). Em suma, isto não é novidade, não andamos distraídos. Andamos a trabalhar muito, precariamente, e só perante o vazio, quando não deu, de facto, para lutar por mais trabalho, é que pudemos ocupar espaço: mediático e de comprometimento político.

Não me vou reter com pormenor na explicação de que a cultura é um bem de evolução essencial, mesmo que não seja de primeira necessidade, porque, de tão evidente, torna-se a esta altura absurdo fazê-lo por escrito. Mas defendo as pessoas que para ela trabalham diariamente. Nós que, tantas vezes sem rede e sem compreensão pública, precisamos de coragem e de uma quase irracionalidade para exercer a nossa profissão. Não temos ingenuidade, não temos um hobbie, não temos preguiça. E, talvez mais agora do que nunca, perdemos o medo do vazio.