Dia 98: as crianças têm mesmo de brincar
A brincadeira é o processo natural que as crianças usam para aprender, experimentar, socializar, para conhecer o mundo e para se desenvolverem.
Querida Ana,
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Querida Ana,
Há mais gente que quer fazer uma birra gigantesca connosco sobre o direito das crianças a brincar em paz e sossego, sem adultos a dizer “Cuidado que vais cair”; mãezinhas a separarem as lutas que dão tanto gozo, com medo de que os seus queridos filhos saiam magoados; ou avós a precipitarem-se para lhes tirar o martelo da mão. Pois é, a Macaquinho do Xinês, 1,2,3, fundada por três pessoas que ganharam um concurso de ideias da Fundação Calouste Gulbenkian, e que há três anos se dedicam a implementar projectos de brincadeira em escolas e centros comunitários, estão prontos a arrancar os cabelos com o que esta pandemia está a fazer às crianças.
Confinadas em casa há meses, com os parques infantis fechados e os amigos transformados em companhia virtual, tudo o que não precisavam era de um ano escolar entre gel desinfectante e recreios instantâneos, sob um medo fóbico omnipresente. Mas é o que vão ter, se a birra da Macaquinho do Xinês, e de todos os que se preocupam com os miúdos, não for suficientemente estridente para que alguém lhes dê ouvidos. Porque, como dizem, fala-se muito em criar condições para que as crianças recuperem os tempos de aprendizagens curriculares perdido, mas pouco se diz como se vão criar condições para que recuperem o tempo de brincar perdido.
Eu sei que é difícil para as pessoas educadas segundo a norma de que primeiro vinham os deveres e só depois a brincadeira, perceber que brincar não é uma actividade extracurricular, para quando não houver mais nada para fazer. Mas a evidência do seu impacto na forma como a criança aprende, como através dela ultrapassa o stress, ganha autoconfiança e reforça os seus laços com os pares é tão grande que convence mesmo os mais incrédulos. Os pais e os professores preocupados com as “notas”, deviam ser os primeiros a exigir recreios a sério, ou seja, com caixa de papel e cordas, baloiços de pneus, paus e pedras e tudo o mais que lhes permita brincar como deve ser. Faça chuva ou faça sol.
E é porque sabe tudo isto que a Macaquinho do Xinês escreveu uma carta aberta em que, entre muitas coisas, apela à Direcção-Geral da Saúde e aos especialistas das mais diversas áreas que reúnam os seus saberes para fazerem um conjunto de recomendações sobre o brincar ao ar livre, às câmaras municipais e às juntas de freguesia para que reabram os parques infantis e os jardins e, claro, às escolas e aos pais para que criem espaços para que a brincadeira espontânea possa acontecer.
Achas que alguém nos ouve, ou entre o pânico instalado e o enorme esforço de encontrar uma rotina no meio desta confusão, o direito a brincar vai ficar esquecido?
Mãe,
Conte comigo para entrar nessa birra porque essa é daquelas em que entro não só pelo gosto de desabafar, mas pela profunda convicção de que é preciso que mude alguma coisa! O direito a brincar, em tantas escolas, e principalmente a partir do 1.º ano já estava tão atropelado que fico com um nó no estômago só de imaginar como ficará agora. Neste século, e com tudo o que já se sabe sobre o desenvolvimento das crianças, é impensável uma escola não considerar o brincar como a forma privilegiada de as crianças aprenderem.
Mãe, é que nem sequer estamos a falar do brincar como uma “matéria importante”, como se fosse qualquer coisa para colocar a par da expressão plástica ou da música — é muito mais grave do que isso. É que a brincadeira é o processo natural que as crianças usam para aprender, experimentar, socializar, para conhecer o mundo e para se desenvolverem. Tirarem-lhes isso é o mesmo que roubar a audição a um bebé e esperar que aprenda a falar da mesma forma. Até pode conseguir, com esforço, aprender a articular palavras mas vai ter muito mais dificuldade, e o resultado nunca vai ser o mesmo.
Espere, há pior. É que existe um outro tipo de brincadeira, e é acima de tudo por esta que estamos a lutar nesta birra, a chamada brincadeira livre que a escola tem a obrigação de proporcionar. E é aquela que está em maior risco de extinção com esta pandemia. A brincadeira livre pressupõe espaço e tempo para os miúdos fazerem o que quiserem, incluindo nada. É muito difícil brincar livremente numa sala de aula, muito menos com quadrados desenhados no chão ou máscaras, e é igualmente impossível com pessoas constantemente a gritar: “Não faças isso!”, “Não podes sair daqui”, “Olha a máscara”.
Acredito que muitos professores vão ouvir a birra da Macaquinho do Xinês a que nos juntamos. E vão questionar-se, e inventar soluções, mas parece-me que nas escolas que já não deixavam os miúdos brincar livremente, vão deixá-los ainda menos. Felizmente as pessoas que estão verdadeiramente informadas sobre a importância do brincar, são também aquelas que já aprenderem a controlar os seus medos e a deixar as crianças “à solta”. São as que sabem que o vírus se propaga muito menos na rua e ao ar livre e que as crianças deixadas a brincar livremente organizam-se com muito mais calma, muito mais espaço e muito menos conflito. Essas vão ver na brincadeira livre uma aliada contra o vírus. As outras vão aproveitar este pretexto para puxar as rédeas mais ainda.
Beijos
P.S.: Quando é que acaba o disparate pegado dos parques infantis fechados? Porque é que um parque há-de estar fechado e um shopping aberto? Lá está, a desvalorização total da brincadeira versus a glorificação de uma camisa nova. Ou mudamos coisas como esta ou não mudamos nada!
No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram