Bolsonaro quer corpos dóceis, mas terá apenas os indomáveis
Dizia Foucault que “é dócil um corpo que pode ser submetido, pode ser utilizado, transformado e aperfeiçoado”, das mulheres às crianças, dos indígenas aos negros, dos jornalistas aos imigrantes. Bolsonaro quer a docilização dos corpos livres do Brasil.
No domingo, 23 Agosto, após indícios de escândalos de repasse financeiro envolvendo o nome de sua esposa — a primeira-dama, Michelle Bolsonaro —, o Presidente da República, Jair Bolsonaro, respondeu a uma pergunta formulada por um repórter de um importante meio de comunicação brasileiro, da seguinte forma: “Minha vontade é encher a tua boca com uma porrada.” Por agora, não vamos discutir o mérito da questão de fundo, que, por si só, renderia fortes críticas ao actual mandatário do Palácio do Planalto. Vamos ao lastro histórico da resposta por ele cuspida.
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No domingo, 23 Agosto, após indícios de escândalos de repasse financeiro envolvendo o nome de sua esposa — a primeira-dama, Michelle Bolsonaro —, o Presidente da República, Jair Bolsonaro, respondeu a uma pergunta formulada por um repórter de um importante meio de comunicação brasileiro, da seguinte forma: “Minha vontade é encher a tua boca com uma porrada.” Por agora, não vamos discutir o mérito da questão de fundo, que, por si só, renderia fortes críticas ao actual mandatário do Palácio do Planalto. Vamos ao lastro histórico da resposta por ele cuspida.
Não seria preciso entrar no contexto político brasileiro a fim de perceber, de plano, que uma frase como a proferida afronta uma premissa basilar de qualquer Estado democrático de direito: a liberdade de imprensa. No entanto, não é exactamente aí que se quer chegar. Em 1983, há 37 anos, nos termos do regime ditatorial brasileiro, o então ditador João Figueiredo, durante entrevista colectiva na mesma esplanada dos ministérios, em Brasília, proferia palavras curiosamente gémeas às de domingo: “Deixa eu falar. Então, cala a boca”. À época, por mais que soasse incómodo aos ouvidos brasileiros, não havia necessariamente surpresa, pois a frase seguia legitimada por regime de excepção. O mesmo governo que mandava repórteres “calarem a boca” era o que já tinha torturado, assassinado e forçado outras centenas ao exílio político. Da boca de um ditador de um Estado autocrático se espera tudo, porque o seu pressuposto é o silêncio, a censura.
No entanto, aquele não é mesmo o primeiro arroubo verbal de Bolsonaro: desde que assumiu o poder, em 2019, contam-se dezenas de surtos autoritários vindos da voz do político. Assumindo-se, ainda, a existência de algum traço de democracia no regime brasileiro, o cenário agora é outro. Bolsonaro já não pode mais falar contra a Constituição Federal que jurou respeitar na posse. Figueiredo não precisava jurar a nada, nem ninguém, senão a sua própria vontade moral. Bolsonaro, eleito pelo sufrágio universal, não diz o que quer, não defende o quer, nem faz o que quer enquanto estiver no cargo mais alto da República. O limite é um só: o texto constitucional, estando consubstanciado no institucionalismo dos freios e contrapesos, estrategicamente situado no coração de Brasília, quer no Congresso Nacional, quer no Supremo Tribunal Federal.
O modo autoritário de fazer política, afastando todos aqueles que não lhe agradam na e da polis (cidade), sejam jornalistas na condição de profissionais ou de civis, vai muito bem quando o monopólio do uso da força deixa de ser uma garantia exclusiva de Estado e passa a ser um instrumento de domínio de um único governante. A força é elemento fundamental em governos, os quais já não se garantem mais pela própria competência democrática. O uso da força das porradas, dos cassetetes, dos canhões e das armas é quase uma constante nos governos autoritários, sejam eles do século XV ou de agora, mas há que se observar que os tempos são outros. Se Bolsonaro se regozija com o arbítrio é preciso que o institucionalismo brasileiro o faça ceder aos ditames da República ou que o coloque, em definitivo, no picadeiro de onde nunca saiu verdadeiramente: o da barbárie.
Sim, o Messias voltou, mas desta vez é a violência que ele prega como mensagem. Michel Foucault, ilustre filósofo francês do século passado, demonstrava como a violência simbólica, exercida pelo poder disciplinar vigente, almeja sempre a produção de corpos dóceis. Dóceis de doces, domesticados, domados, adestrados nos mais variados entes sociais. Dizia Foucault que “é dócil um corpo que pode ser submetido, pode ser utilizado, transformado e aperfeiçoado”, das mulheres às crianças, dos indígenas aos negros, dos jornalistas aos imigrantes.
Bolsonaro quer a docilização dos corpos livres do Brasil. Da militarização das escolas à censura da imprensa livre, do fuzilamento da “petralhada” (oposição) às benesses do trabalho infantil, o Presidente brasileiro pisa todos os dias nos direitos e garantias fundamentais do extenso Artigo 5.° da Constituição da República e escarna dos demais poderes. Porque, como criança pirracenta que não gosta de ser contrariada, crê que tudo que fizer ou disser terá o que já teve até agora de consequência a nível político: nada. Esquece-se, porém, o Messias, que onde se querem corpos dóceis, o povo resiste, e se terão apenas os indomáveis.