“Futebol e política não se misturam!”
A importância que damos àqueles momentos de escape oferecem a estes atletas uma plataforma única, através da qual nos chegam mais facilmente do que qualquer político ou activista. É por isso que o desporto deve assumir sem medo o seu papel de promotor de valores na sociedade.
“Futebol e política não se misturam!” Com as necessárias adaptações, esta é uma frase que muitos de nós ouvimos em algum momento da vida. O futebol – e alarguemos desde já o espectro para o desporto competitivo em geral – é visto como um escape ao dia-a-dia. Um momento semanal de fuga à labuta, com todas as emoções associadas à vitória e à derrota que daí advém.
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“Futebol e política não se misturam!” Com as necessárias adaptações, esta é uma frase que muitos de nós ouvimos em algum momento da vida. O futebol – e alarguemos desde já o espectro para o desporto competitivo em geral – é visto como um escape ao dia-a-dia. Um momento semanal de fuga à labuta, com todas as emoções associadas à vitória e à derrota que daí advém.
É por esse motivo que ouvimos, desde pequenos, que este mundo tão particular não se mistura com “política”. É um imaginário próprio em que ninguém é operário nem banqueiro, em que somos todos parte de uma comunidade de pares unidos por um símbolo. E é assim que, desde pequenos, construímos a mesma barreira que os nossos pais e avós criaram para proteger aquele momento especial de qualquer interferência externa.
Esta visão é compreensível, mas peca por descartar uma responsabilidade histórica que o desporto e o futebol têm para com a sociedade civil. Passando os olhos pelo século XX, podemos inferir essa ligação com facilidade.
Nos Estados Unidos, Muhammad Ali, o campeão do povo, combateu fora de ringue pelos direitos civis, pela liberdade de crença e de expressão e contra a guerra em plenos anos 60. Em simultâneo, no court de basquetebol, Bill Russell usou o seu estatuto como estrela dos Boston Celtics para se bater contra o racismo, tendo até boicotado um encontro amigável, numa época em que a segregação não só estava institucionalizada como ainda era plenamente legal. Em Portugal, a Académica de Coimbra juntou-se à greve estudantil de 1969 e promoveu um protesto inédito contra o Estado Novo na final da Taça de Portugal desse ano, com tarjas contestatárias a serem exibidas nas bancadas ao longo de todo o encontro.
São meros exemplos de um passado distante que vamos revivendo nos nossos dias.
Em 2016, o quarterback Colin Kaepernick ajoelhou-se durante a tradicional cerimónia do hino norte-americano de um jogo de futebol americano em protesto contra o aumento de violência policial sobre afro-americanos naquele país. Recentemente, a morte de George Floyd às mãos das autoridades levou a protestos à escala global e também no desporto, de todas as formas imagináveis.
Já esta semana, vimos mais um momento de uso desproporcional da força quando um polícia baleou por sete vezes as costas de Jacob Blake no Wisconsin. Em reacção ao caso, os atletas da NBA seguiram o exemplo de Bill Russell e boicotaram os jogos dos playoffs. Em cima da mesa esteve um possível fim de época antecipado em protesto contra o caso.
Regressando a Portugal, no passado mês de Fevereiro, Moussa Marega abandonou o relvado motivado pelos insultos racistas de que estava a ser alvo (podemos ver até aqui uma triste repetição da temática em muitos dos casos recentes). A resposta desiludiu, não foi tão firme ou unânime quanto precisávamos. Houve, talvez, um receio de escalar o problema. Mas ele existe e, quanto muito, foi empurrado para a frente. A montante poderá ressurgir e diz-nos a experiência que o fará com maior dimensão.
A importância que damos àqueles momentos de escape oferecem a estes atletas uma plataforma única, através da qual nos chegam mais facilmente do que qualquer político ou activista. É por isso que o desporto deve assumir sem medo o seu papel de promotor de valores na sociedade, seja pela justiça social, seja contra o racismo, a violência de género ou qualquer outra maleita nefasta das que nos continuam a assolar. Não devemos exigir aos atletas que sejam activistas por definição – nem todos terão essa pré-disponibilidade ou vontade. Mas devemos abrir portas para que o possam ser.
Pensando nos casos acima referidos, podemos ter aqui uma lição para aprender com o que se passa do lado de lá do Atlântico (ainda que vão escasseando, elas existem sempre). O empoderamento dos atletas permitiu-lhes tomar a dianteira em problemas de ordem social e a tornarem-se participantes activos nas suas comunidades.
Talvez o nosso desporto ainda não esteja preparado para agir de tal maneira. Será um processo orgânico e impossível de delinear no tempo. Importa sim que, quando os seus intervenientes pedirem a palavra, deixemos este velho preconceito de parte e escutemos com atenção.