Voltar à divina rebeldia de Jesus – o testemunho de José Veiga Torres
A sua obra tem um compromisso claro: o imperativo de resgate do cristianismo de Jesus, contra a sua desvitalização institucionalizada ao longo dos séculos.
A hierarquia católica em Portugal foi incapaz de traçar um novo rumo pastoral quando o terramoto da democracia e da descolonização acelerou a mudança social em Portugal. A urgência eclesiástica foi outra: ignorar o passado de colaboração com poderes sombrios. Lembremos os casos do Padre Joaquim Alves Correia (1945), de D. António Ferreira Gomes (1958), de D. Sebastião Soares de Resende (1962), dos Padres Mário de Oliveira e Felicidade Alves (1968), de D. Manuel Vieira Pinto (1970), dos massacres de Mucumbura e de Wiriyamu denunciados pelos padres Teles Sampaio e Fernando Mendes (1970-72). Em todos eles, o episcopado optou pela falsa neutralidade. A sequência dessa demissão foi a impreparação manifesta da hierarquia para anunciar a radicalidade do Evangelho numa sociedade democrática, laica, plural e pós-moderna.
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A hierarquia católica em Portugal foi incapaz de traçar um novo rumo pastoral quando o terramoto da democracia e da descolonização acelerou a mudança social em Portugal. A urgência eclesiástica foi outra: ignorar o passado de colaboração com poderes sombrios. Lembremos os casos do Padre Joaquim Alves Correia (1945), de D. António Ferreira Gomes (1958), de D. Sebastião Soares de Resende (1962), dos Padres Mário de Oliveira e Felicidade Alves (1968), de D. Manuel Vieira Pinto (1970), dos massacres de Mucumbura e de Wiriyamu denunciados pelos padres Teles Sampaio e Fernando Mendes (1970-72). Em todos eles, o episcopado optou pela falsa neutralidade. A sequência dessa demissão foi a impreparação manifesta da hierarquia para anunciar a radicalidade do Evangelho numa sociedade democrática, laica, plural e pós-moderna.
A vida e a obra de José Veiga Torres dialogaram sempre com esta história triste, a partir do seu avesso. Do avesso da missionação em que se envolveu e que percebeu conluiada com o poder colonial, primeiro. E, depois e sempre, do avesso de um cristianismo longe de Jesus. Daí resultou uma obra de densidade invulgar[i] que analisa a trajetória do cristianismo como proposta para todos. Uma obra com um compromisso claro: o imperativo de resgate do cristianismo de Jesus, contra a sua desvitalização institucionalizada ao longo dos séculos.
Na origem desse movimento ímpar chamado cristianismo, José Veiga Torres situa um Jesus que nos ensinou a libertar-nos de todas as formas de dominação, particularmente as religiosas. Na verdade, “o testemunho histórico de Jesus não é uma mera mensagem, é uma prática de vida, um modo de ser e de viver humano, de divina rebeldia a quaisquer práticas de dominação”. É desse testemunho radical que falam os evangelhos, onde se vê um Jesus “defensor dos pobres, dos oprimidos, dos sofredores e de todos os excluídos da sociedade”. Um Jesus que anuncia, como sua essencial proposta, um Reino que era “outra espécie nova de agregação humana, como um novo modo de ser, de viver, de conviver e de se organizar”. Proposta vivida com coragem e com sentido profético pelas primeiras comunidades cristãs (o início do “movimento cristão”, como lhe chama José Veiga Torres). Nessas comunidades de vida, a única institucionalização genuína era “radicalmente carismática, cujo princípio ideológico era a agapê, que devia exprimir-se e provocar-se pelo rito da partilha do pão, memorial de Jesus”.
Mas − adverte José Veiga Torres − esse testemunho de uma vida nova iniciada em Jesus e continuada nos seus seguidores chega-nos “pervertido, falsificado, por critérios mundanos de poder e domínio (…) que bloqueiam o seu projeto de convivialidade”. Tal desvirtuamento percorre toda a história do cristianismo, menoriza a liberdade e a igualdade e coloca no seu lugar uma hierarquia de poder apoiada numa homogeneização doutrinal, organizativa e disciplinar. Em vez de um estilo de vida fraterno, surgiu um sistema de normas e dogmas que mimetizam os reinos de dominação terrena. Em vez de uma participação ativa e plural de todos/as, impôs-se uma mediação sacerdotal burocratizadora, piramidal.
A investigação de José Veiga Torres convoca afinal a memória presente na Primeira Carta de Pedro, dirigida a cristãos sem cidadania, sem direitos. As comunidades desses cristãos eram o amparo social e espiritual diante da atomização social das multidões à deriva pelo Império, sem terra, sem profissão certa. Só comunidades de irmãos − rede vicinal humanizadora e desburocratizada baseada na partilha dos bens − permitiriam que eles encontrassem sentido para a sua existência, que o Império nunca poderia oferecer. Essa rede é o cristianismo nascente, o “Movimento de Jesus”. Tudo aquilo que o cristianismo, hoje, necessita de voltar a recuperar e que José Veiga Torres não se cansa de investigar: a inversão do “normal”, “tal como Deus quer” (1 Pedro 5,1-4). É por isto que é imperiosa a (re)visitação da obra de José Veiga Torres.
[i] Entre outros trabalhos, Ser cristão? Porquê? Para quê? Que discurso, que projecto? (Lápis de Memórias, 2013) e Desafio aos cristãos e a outras gentes (para lá da condição humana, a vocação humana (Lápis de Memórias, 2019)
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