Uppercase Print ou a pichagem que meteu medo ao regime

A partir de um caso verídico da Roménia de Ceausescu, Radu Jude propõe no IndieLisboa uma “ficção documental” sobre o medo, a hipocrisia e a cobardia, cheia de “tesourinhos deprimentes”.

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O humor é uma coisa muito séria, como fica provado logo desde as primeiras imagens de Uppercase Print: uma emissão dos primórdios da televisão a cores, penteados e roupas a remeter para o início dos anos 1980, dois homens e uma mulher que entoam com uma solenidade evidente uma ode cheia de lugares-comuns ao pai da pátria. A recitação termina, mas a câmara não mexe. “OK, vamos gravar, está tudo bem.” E um dos homens diz: “O texto não está no teleponto.” “Olha o teleponto!”, ouve-se da régie.

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O humor é uma coisa muito séria, como fica provado logo desde as primeiras imagens de Uppercase Print: uma emissão dos primórdios da televisão a cores, penteados e roupas a remeter para o início dos anos 1980, dois homens e uma mulher que entoam com uma solenidade evidente uma ode cheia de lugares-comuns ao pai da pátria. A recitação termina, mas a câmara não mexe. “OK, vamos gravar, está tudo bem.” E um dos homens diz: “O texto não está no teleponto.” “Olha o teleponto!”, ouve-se da régie.

Ao longo da primeira meia hora de Uppercase Print (IndieLisboa, Cinema Ideal, sábado às 22h, e Culturgest, dia 5 às 21h45) a quantidade de “tesourinhos deprimentes” que Radu Jude desenterrou dos arquivos da televisão estatal romena dá vontade de rir, mesmo que seja um riso triste. Estamos em 1981, afinal, mas a memória que as imagens registaram é a de um país que parece parado no tempo, esquecido pelo progresso. É muito fácil rirmo-nos com a pobreza de uma televisão rigorosamente vigiada, é verdade (apetece perguntar “como é que alguém pode levar isto a sério?”), e é isso que Jude já sabe: a história que ele nos quer dar a ver é tão kafkiana, que contada ninguém acredita. Só mesmo mostrando. 

A saber, três ou quatro frases (anti-)revolucionárias pichadas nas ruas, coisas simples, vagas, que até ecoam as lutas sindicais então a decorrer na Polónia: “queremos liberdade, queremos justiça, queremos sindicatos livres”. Um escândalo. Querem agora lá ver, algum insensato que se deixou confundir pela propaganda capitalista e escreveu a giz numa parede o que o mandaram escrever. Provocações que se apagavam e estava o caso resolvido.
Mas o medo estava tão enraizado na Roménia de Nicolae Ceausescu que os mecanismos estatais puseram em marcha a sua impiedosa maquinaria de repressão – grafólogos, polícias, denunciantes… Tudo isto para descobrir que quem escreveu as frases foi um liceal: Mugur Calinescu, 17 anos, filho de pais divorciados que acaba de mudar de escola. O pai é um alcoólico agressivo que já se voltou a casar, a mãe uma empregada de loja que se sacrifica para que o filho tenha uma vida melhor. Que raio de regime tinha medo de um puto em rebeldia adolescente?

O riso, claro, vai desaparecendo à medida que o bulldozer da Securitate, a polícia secreta romena, começa a tratar com uma bigorna uma história na qual deveria ter usado pinças. (Mas a elegância nunca foi característica dos autoritarismos.) Esse humor que se estrangula na garganta é típico de Radu Jude, cineasta que tem a honra dúbia de ser um dos grandes nomes da nova vaga romena que nunca teve estreia comercial entre nós. O Indie tem mostrado a sua obra completa, felizmente, e já nos primeiros dois filmes – The Happiest Girl in the World (2009) e Everybody in Our Family (2012), ambos apresentados na competição principal – se sentia esse humor malsão.

Desde Aferim! (2015, que venceu nesse ano o prémio máximo do certame), no entanto, Jude começou a voltar-se para a própria história da Roménia, através de uma sequência de filmes à volta do século XX formado pela adaptação literária Scarred Hearts (2016), pelo documentário The Dead Nation (2017) e pela ficção inspirada em factos reais I Do Not Care If We Go Down in History as Barbarians (2018).

Uppercase Print, mostrado no Fórum de Berlim em Fevereiro último, é outra coisa ainda. É uma fusão de técnicas e formas: a história de Mugur Calinescu é verídica; a encenadora Gianina Carbunaru dramatizou os dossiers da polícia política na peça teatral de 2012 que serve de base ao filme; Jude entrelaça a sua adaptação ao cinema com os tais arquivos da televisão romena, todos contemporâneos do momento em que o caso decorreu realmente.

No papel, não se percebe muito bem como é que a mistela pode resultar; no ecrã, funciona impecavelmente, num constante jogo de distanciamentos e aproximações que desenha o autoritarismo – todos os autoritarismos – como esgotos de hipocrisia potenciando o que de mais baixo há no ser humano. Tudo em Uppercase Print descreve a última década da Roménia de Ceausescu como um reinado de falso terror no qual todos fingiam acreditar, uns porque lhes convinha, outros porque não tinham poder para o combater. O rei ia nu e todos o sabiam mas, como às tantas se diz, “entre cobardes não se pode fazer nada”. É essa a tragédia de Uppercase Print.