Uma Feira do Livro do Porto sob o signo do feminino e à descoberta de Leonor de Almeida

A enigmática poetisa portuense, cujo nome será inscrito numa das tílias dos jardins do Palácio de Cristal, é a grande homenageada desta edição em que a criação assinada por mulheres em diversos domínios é o fio condutor do programa.

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Leonor de Almeida (aqui com o filho na Foz, em Julho de 1937) é a homenageada deste ano da Feira do Livro do Porto DR

Com 115 pavilhões ao ar livre e um apertado conjunto de regras para evitar a propagação da covid-19, a Feira do Livro do Porto, organizada pela autarquia, regressa na sexta-feira aos jardins do Palácio de Cristal para uma edição cujo programa cultural, coordenado por Nuno Faria, dá o protagonismo às mulheres, a começar pela redescoberta da poetisa Leonor de Almeida (1909-1983), a quem será atribuída no sábado uma tília de homenagem.

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Com 115 pavilhões ao ar livre e um apertado conjunto de regras para evitar a propagação da covid-19, a Feira do Livro do Porto, organizada pela autarquia, regressa na sexta-feira aos jardins do Palácio de Cristal para uma edição cujo programa cultural, coordenado por Nuno Faria, dá o protagonismo às mulheres, a começar pela redescoberta da poetisa Leonor de Almeida (1909-1983), a quem será atribuída no sábado uma tília de homenagem.

A marca feminina revela-se logo, aliás, na frase que serve de divisa à feira deste ano – Alegria para o fim do mundo –, o verso de Andreia C. Faria (n. 1984) que esta escolheu para título da sua poesia reunida, publicada em 2019 na Coolbooks, chancela da Porto Editora. Juntamente com Inês Lourenço (n. 1942), também nascida no Porto, Andreia C. Faria compõe a dupla de poetas residentes da Feira do Livro deste ano. Se a singularíssima poesia anti-sentimental de Inês Lourenço demorou o seu tempo a ver-se devidamente reconhecida, Andreia C. Faria é, sobretudo a partir da publicação de Tão Bela Como Qualquer Rapaz (Língua Morta, 2017), um dos nomes mais consensuais da nova poesia portuguesa. O público da feira poderá assistir, no dia 11 de Setembro, a uma conversa entre estas duas autoras de diferentes gerações, cuja moderação estará a cargo da também poetisa Catarina Santiago Costa.

A mesma tónica na criação feminina confirma-se na programação de cinema, comissariada por Guilherme Blanc e inteiramente dedicada à artista norte-americana Lynn Hershman Leeson, em cuja obra as interrogações em torno do modo como nos relacionamos com as tecnologias se cruzam com questões de género e de identidade. A construção de alter-egos que extravasam os limites do universo criativo em sentido estrito e se prolongam na vida quotidiana é uma das características mais peculiares desta autora também tardiamente valorizada.

A par do feminino, outra linha de força desta programação, assume Nuno Faria, director artístico do Museu da Cidade, é justamente esse resgate de “vozes esquecidas”, como é exemplarmente o caso de Leonor de Almeida. Após a atribuição da tília, serão lançados no auditório da Biblioteca Municipal Almeida Garrett os livros Na Curva dos Cardos do Tempo (Ponto de Fuga) – reunião da sua obra poética com prefácio de Ana Luísa Amaral – e Tatuagens de Luz, da escritora e cineasta Cláudia Clemente, resultado de anos de investigação da vida e obra desta hoje muito pouco lembrada poetisa portuense. O livro, co-editado pela Documenta e pela Câmara do Porto, “é um texto muito singular”, diz Nuno Faria, já que não só cruza a biografia de Leonor de Almeida com o relato do lento processo de descoberta empreendido pela sua biógrafa, como as vidas de ambas acabam por ter inesperados pontos de ligação. “A Leonor de Almeida foi esteticista da avó da Cláudia Clemente”, exemplifica o curador.

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Leonor de Almeida em 1948 DR

Autora de Caminhos Frios (1947), Luz do Fim (1950), Rapto (1953) – um poema-livro que é também um belo objecto gráfico desenhado por Fernando Lanhas – e Terceira Asa (1960), Leonor de Almeida está ainda representada na Antologia de Mulheres Poetas Portuguesas (1962), de António Salvado, na célebre Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica (1966) de Natália Correia, bem como nas várias edições da influente Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa (1959), co-organizada por E. M. de Melo e Castro e Maria Alberta Menéres, e ainda em revistas como Serpente ou em obras colectivas como Poemas para Florbela (1950). Chegou a ser entusiasticamente referida por críticos como Gaspar Simões ou Jacinto do Prado Coelho, mas é hoje virtualmente desconhecida.

Nascida no dia 25 de Abril de 1909, embora se tenha auto-atribuído várias outros anos de nascimento – a generalidade das antologias e obras de referência fá-la nascer em 1915 –, esteve casada durante algum tempo com o poeta e ensaísta Alexandre Pinheiro Torres (1923-1999) e, segundo Cláudia Clemente, “foi poeta, enfermeira, fisioterapeuta, esteticista, mãe, viajante, aventureira, corajosa, pioneira, mas acima de tudo, livre”. Já depois de se divorciar do segundo marido, radicou-se em Copenhaga.

“Estamos a propor a descoberta de uma poeta e a trazê-la para a fruição dos leitores e para o debate crítico, dando-lhe uma nova possibilidade”, resume Nuno Faria.

Também o programa de “lições”, comissariado por Anabela Mota Ribeiro e José Eduardo Agualusa, ficou este ano a cargo de cinco mulheres: Ana Luísa Amaral falará da guerra dos sexos em Shakespeare; Joana Matos Frias cruzar-se-á com “Bovary, Karenina e talvez Capitu”, Ana Paula Arnaut debruçar-se-á sobre a personagem da mulher do médico em Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago; Matilde Campilho abordará os livros para crianças de Sophia; e Hélia Correia tratará de Antígona.

A feira terminará no dia 13 de Setembro com uma homenagem a mais uma mulher, a imunologista Maria de Sousa, que morreu em Abril passado, vítima de covid-19.